Tanto em A palavra escrita e a não-escrita, Ítalo Calvino como em O Trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever de Roberto Cardoso de Oliveira, está posta a existência de dois mundos que se relacionam, mas que nunca chegam a se identificar completamente: o mundo da escrita (ou “ estar aqui”) e o mundo não escrito, o vivido (ou “estar lá” e a conseqüente utilização das faculdades da percepção).
O mundo real –não-escrito – é aquele cujo âmbito é o do inesperado, do caos, no qual as coisas efetuam-se sem conexão lógica, sem temporalidade definida e sem relações de sentido. Se fosse possível olharmos esse domínio livres de nossas “representações coletivas”, provavelmente não veríamos mais que fluxos de acontecimentos e seríamos constantemente atingidos pelo repentino e pelo impremeditado. Calvino mostra indícios dessa incapacidade de apreensão absoluta do real a partir das frestas no sentido que o cotidiano talha quando comparamos seu turbilhão de acontecimentos com o monolítico textual: constatação simples, bastando tirar os olhos do papel e “descobrir um mundo bem diferente da página escrita” .
O texto, por sua parte, é baseado em uma linguagem – a palavra escrita – que possui seus mecanismos próprios, sendo as relações entre significante e significado e entre um signo e outro estabelecidos de maneira relacional e arbitrária, tendo peso nulo a suposição de uma afinidade essencial e de natureza entre o signo lingüístico e o referente. Ao escrever sobre o real e ao contarmos uma história (fictícia, jornalística ou científica) que organize o que vemos, usaremos sempre essa linguagem e é através dela que o mundo terá sentido. Decodificamos, então, a realidade porque utilizamos mecanismos cujas regras já estão estabelecidas e, baseados nelas é que podemos extrair a realização de experiências, a criação de conceitos ou de imagens. O mesmo seria impossível caso esperássemos que fosse o mundo aquele responsável pela criação de referências próprias, tendo em vista que sua matéria é caótica e não possui indícios de intencionalidade.
Mas não é por funcionarem de maneira própria que mundo e texto não possuem ligações. Pelo contrário, Calvino coloca que é exatamente para escrever que devemos olhar o mundo, assim como é pelo olhar e pelo escutar que Cardoso de Oliveira vê a possibilidade de tornar vivas as relações sociais, construindo significações e sentidos. Portanto, encontra-se em ambos a importância dada à percepção, mesmo que esta não seja mobilizada para os mesmos fins: enquanto o primeiro autor está preocupado com a criação de imagens estéticas, o segundo se empenha em engendrar conceitos a fim de legitimar a Antropologia como Ciência Humana. Essa diferença de posicionamento com relação ao que se percebe pode ser observada, inclusive, nas críticas tecidas por um, à ambição científica da área de humanas
e, pelo outro, ao viés literário da disciplina antropológica, taxado como característico de um “olhar ingênuo”.
Entretanto, nem Cardoso de Oliveira está interessado em predizer o futuro das sociedades, nem Calvino pensa em descrever o mundo sem um olhar disciplinado.
Para o escritor italiano se trata de ser disciplinado no sentido de se livrar de uma outra disciplina (a do senso comum) adquirida pelo costume, de nos livrarmos das palavras e dos conceitos para ver o mundo como se fosse pela primeira vez. “Ser ingênuo” é conseqüentemente fundamental para a escrita artística, tão ingênuo ao ponto de escrevermos mesmo sobre aquilo do que nos sentimos distantes, como é o caso dos cinco sentidos.
A partir desse exercício descobrimos nossas próprias imagens estéticas, “ nossa moral” e o “ nosso eu”
e realizamos a escrita não só como luta contra o caos de onde vem a sua matéria (organizando-o) mas sobretudo contra aquilo que reduz o que é inapreensível (o mundo) aos clichês.
Exatamente para se aproximar do que está distante é que Cardoso de Oliveira estabelece as faculdades perceptivas como típicas da antropologia. Mas ao contrário de adotar uma fenomenologia da percepção a partir da qual olharíamos para a superfície das coisas e veríamos sua essência, o antropólogo utiliza uma idéia cara à disciplina
– a observação participante – e, baseando-se na hermenêutica (criação de um espaço singular de intersubjetividade), valida o encontro etnográfico como aquele que possibilita um conhecimento profundo da sociedade estudada, a partir do que o pesquisador vê e ouve quando em campo. O “olhar ingênuo” (de um literato ou de um médico) seria, nesse caso, aquele que não se baseia nos conhecimentos e na tradição antropológica, só sendo reprovável na medida em que não contribui para o desenvolvimento deste campo científico específico.
Concluímos, enfim, que tanto Calvino quanto Cardoso de Oliveira visam traçar as linhas que, partindo da mesma matéria – o caos, o “mundo móvel”
, a “ natureza morta”
– a recortam e ao mesmo tempo se consolidam como diferentes tipos de pensamento: um, o artístico e o outro, uma mescla de pensamento científico e filosófico. Digo um misto porque Cardoso de Oliveira cobra da Antropologia bases típicas à ciência, como a necessidade de que os autores controlem os dados etnográficos
, dotando portanto dotando as teorias de falseabilidade (já que leitores poderão julgar com segurança e a partir do que lêem); ao mesmo tempo em que dá à mesma status filosófico, uma vez que a capacita a criar conceitos que fazem parte de uma moldura maior (paradigma ao qual fazem parte) passíveis de mudança em decorrência da experiência de campo.
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Ítalo Calvino, “A palavra escrita e a não-escrita”, in Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado (orgs), Usos e Abusos da História Oral, p. 140. R. Cardoso de Oliveira, O Trabalho do Antropólogo, São Paulo, UNESP, p. 20. Ítalo Calvino, “A palavra escrita e a não-escrita”, in Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado (orgs),Usos e Abusos da História Oral, p. 147. R. Cardoso de Oliveira, O Trabalho do Antropólogo, São Paulo,UNESP, p. 33. Ítalo Calvino, “A palavra escrita e a não-escrita”, in Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado (orgs), Usos e Abusos da História Oral, p. 140. R. Cardoso de Oliveira, O Trabalho do Antropólogo, São Paulo, UNESP, p. 20. As afirmações sobre a existência de formas diferentes de pensamento enquanto arte, ciência e filosofia (e suas respectivas singularidades) foram baseadas em Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, São Paulo, Editora 34.
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