24 gen 2009

Fuzilamento

Mesmo não o amando eu ainda o amo. Porque enquanto estamos deitados na cama, ele de cueca e eu só com a calça e as meias, mesmo pensando “acabou, acabou, acabou...” eu penso também nas cenas do filme que eu rodaria e que dedicaria à ele, cinema para tentar explicar o que estava acontecendo. Seria um longa autobiográfico. Um casal. O homem se parecia fisicamente com ele – branco, cabelos e olhos escuros – mas achei que a protagonista talvez devesse tender mais para o primeiro mundo. Talvez branca também, cabelos lisos. Não gostaria que fosse muito parecida comigo – óbvio demais.

Na cama eu ainda não havia pensado na primeira cena, mas uma delas, ao longo do filme, será de nós dois como estamos agora: deitados, o rosto dele muito perto do meu, eu só podendo ver o olho esquerdo dele. Tento memorizar bem a linha do seu rosto, ela separa o rosto dele do resto do mundo e do olho, o exterior se distancia por apenas alguns centímetros. Da parte convexa da linha ondulam alguns fios de cabelo, grossos. Baixo um pouco a vista e vejo muitas cobertas para nos proteger do frio. Ao movimentar um pouco o rosto sinto o gosto de lágrimas e por alguns segundos fico feliz pensando que ele chora, que notou algum problema. Mas logo percebo que as lágrimas são minhas, que choro baixo e silenciosamente, envergonhada. Quero decorar essa imagem porque penso em desenhá-la, mas penso também que ela será a cena do filme que farei – provavelmente uma cena da nossa vida que ele também não viu. Ele está com os olhos muito abertos, talvez um pouco frustrado por sempre chegar em casa feliz e disposto a me amar e jamais receber uma resposta positiva da minha parte, encontrando constantemente uma pessoa que vê problemas em tudo, insatisfeita. Eu sei que hoje ele queria ter feito amor. Convidou-me para deitar, fez massagem, beijos, beijos, beijos, tirou a camisa. Durante a massagem eu falei que tinha um amante. É verdade? E se fosse verdade, o que você faria? Eu ficaria triste. Você choraria? Não sei. E massagem, você faria a massagem? Não. Por quê, o que a massagem tem a ver com o fato de eu ter um amante? Eu perderia a vontade. Um, dois minutos. Eu não tenho um amante, pode se sentir seguro, tranqüilo, tranqüilo para trabalhar; enfim, pode me amar pois não tenho um amante. Mas que eu queria dizer é que para ele, como para todos os homens o amor depende disso: depende do quanto eu sou eu sou fiel e de quanto eu o deixo calmo para ele fazer as coisas que ele gosta – seja trabalhar na bolsa de valores, seja fazer arte ou filosofia. E ele: é mais o contrário, não é que eu te ame porque você não me trai, é que você não me trai porque eu te amo. E eu não disse, mas a questão, para variar, estava longe de ser essa. E eu tinha tanto, tanto para dizer: mas nós não tínhamos um relacionamento aberto, nós não aceitamos que é normal sentir desejo por outra pessoa, de que vale ter um relacionamento aberto com alguém que não vai te amar se você se atrair por outro. Mas o maior problema não chega nem a ser esse, porque o problema não é o relacionamento aberto. O problema é que o amante é o foco, o foco para decidir o continuar ou não continuar, para decidir o amor. Mas eu só disse: mas problema não é esse... No entento eu entendo, eu entendo que você me traia, afinal, estou muito ocupado com o trabalho, te deixo sempre sozinha. Me deixar sempre sozinha. E o foco é o trabalho. Porque se por um lado o meu problema não era o relacionamento aberto, pelo lado dele o foco não era o amante, nem o amor, mas o trabalho.

Eu tento balbuciar algumas palavras e, com medo de parecer ridícula, acabo parecendo infantil balbuciando frases mal formuladas cortadas por silêncios estúpidos. Eu estou de luto. Quem morreu? Ninguém morreu estou de luto pelo nosso relacionamento. Por quê? Porque eu sinto que ele vai terminar e que mesmo que eu ficasse aqui ele também terminaria. Por quê ele terminaria? Não sei. Você sabe. Eu acho... que não me agrada muito a maneira que você me ama, pra mim é como se o relacionamento já tivesse terminado. E eu não disse, mas é que ele me ama como um homem, eu sou um apêndice da vida dele: depois do trabalho, depois da carreira, ele quer me ver depois do trabalho, antes de ir ao trabalho fazemos sexo, não podemos patinar porque ele trabalha, ele quer dormir porque está cansado por causa do trabalho, ele me liga durante ou depois de haver terminado o trabalho. Ele se levanta para procurar a camisa, que ele veste, e o celular, que ele coloca para despertar cedo, pois deve trabalhar amanhã. Deita de novo, sem me tocar. Então o nosso relacionamento terminou? E eu digo que ele não entende nada, o que ele deve ter entendido como “você é burro” ao invés de pensar que existem muitas coisas que eu quero dizer, que eu quero resolver, que eu quero que nós sejamos. Como há alguns minutos quando ele ainda estava sendo carinhoso e me olhava com os olhinhos lindos e inocentes que ele têm, com um formato que eu ainda não consigo descrever. Ele piscava, piscava, piscava e pergunta o que você está pensando? Eu pensava em nós dois, em quanto o amava, em quanto me deprimia ter feito tantos planos, que eu estaria satisfeita se nós vivêssemos uma vidinha juntos, com uma casinha, com filhos, mas aí tem as aspirações dele, tem o trabalho, tem o exterior e porque eu não penso assim também, meu deus? Por que eu não desejo isso também? Por que para mim é tão fácil aceitar nada? Eu respondi: é muito complexo o que eu estou pensando. O que ele deve ter entendido por “você não vai entender porque é burro”. Mas ele não vai entender o que eu estava pensando, assim como não vai entender o que eu estou pensando, porque ele só entende as coisas do ponto de vista dele, que só tem vontade de ser algo, de ser artista, de ser reconhecido pelo trabalho. Não vai entender porque vai pensar que eu quero que ele desista de tudo para ficar comigo quando o que eu teria gostado é que ele não quisesse o que ele quer e que me quisesse.

Eu nem termino de pensar e ele já está dormindo. Suponhamos que ele tenha entendido tudo errado – que foi o que aconteceu – suponhamos que ele tivesse entendido eu ter dito “você é burro”. Creio que a reação não seria dormir. Mas eu esqueci que ele é um homem, é só um homem tem a capacidade de ficar na mesma cama que um inimigo. E ainda dormir tranquilamente. Eu tenho essa capacidade à custa de me metralhar inteira por dentro. Então esboço um choro rápido e profundo no escuro, aqueles que duram cinco segundos e cujas lágrimas nem chegam a escorrer, como soluçar para dentro. Levanto e vou ao banheiro acabou, acabou, acabou ...

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