10 nov 2010

las manos que teñían nanas

de nunca crecer


reptan silenciosas entre el tumulto

de pelusas de escoba



de arrebatos de té y tabaco

en clave de sol sin amanecer


esas manos de nana

dejando a su paso hilillos

de flores de hiel
en el leve espacio entre tecla y tecla

en esas diminutas ranuras de pétalo de rocío

se sumergen los tenues versos

que desertan de mis manos



debajo de cada palabra hay una palabra

una selva de poemas dormidos

3 ott 2010

Regras, disposições e habitus


Jacques Bouveresse


Tradução: Priscila Santos da Costa



Se existe um ponto em comum entre Bourdieu e Wittgenstein, é que ambos possuem uma consciência aguda da ambiguidade da palavra “regra” ou daquilo que eu prefiro chamar de sentidos diferentes, e talvez até muito diferentes, com os quais a palavra “regra” pode ser empregada. Bourdieu já citara, no Esboço de uma Teoria da Prática, a passagem das Investigações Filosóficas na qual Wittgenstein se pergunta em que sentido se pode falar da “regra a partir da qual alguém age?” e se é sempre possível falar de algo desse tipo no momento em que alguém utiliza uma palavra: “O que eu chamei de “A regra a partir da qual ele age”? – A hipótese que descreve satisfatoriamente a utilização das palavras que nós observamos, ou a regra que ele consulta enquanto utiliza os signos; ou aquela que ele nos oferece como resposta quando o interrogamos sobre a regra utilizada? – Mas qual seria ela se nem a observação nem a pergunta permitem o claro reconhecimento de uma regra? – Pois ele certamente me deu , quando eu o perguntei o que ele entendia por “N”, uma explicação, mas ele estava pronto a revogar e a modificar essa explicação. Consequentemente, como eu posso determinar a regra segundo a qual ele joga? Ele mesmo não a conhece. Ou, mais exatamente: o que a expressão “Regra segundo a qual ele joga” supostamente quer dizer aqui?” [PU, § 82]

Certamente existem dois níveis que devem ser claramente distinguidos na denúncia wittgensteiniana do que se pode chamar de “mitologia das regras”. A passagem que acaba de ser citada intervém no contexto de uma crítica da ideia de linguagem como cálculo ( à qual Wittgenstein ainda aderia à época do Tractatus), ou seja, da suposição de que “aquele que enuncia uma frase e a pensa [meint], ou a compreende, efetua um cálculo segundo regras determinadas” [PU,§ 81]. Não é verdadeiro, observa Wittgenstein, que no uso de uma palavra como “cadeira”, por exemplo, “nós estejamos equipados com regras para todas as possibilidades do seu emprego” [PU, § 80]; e isso evidentemente não significa que nós deixemos de atribuir a ela uma significação. O uso de uma palavra pode ser regular sem ser, por isso, “completamente limitado por regras” [PU, § 84].

Por outro lado Wittgenstein critica igualmente uma concepção que se pode chamar de “mecanicista” daquilo que ocorre no caso em que recorremos a um cálculo que obedece a regras estritas. Enquanto aplicamos regras que são explícitas e unívocas, como o são aparentemente as que utilizamos na matemática, parece que a compreensão da regra determina antecipadamente e de uma vez por todas o que deve ser feito em cada caso que possa vir a se apresentar. Para discutir essa concepção, Wittgenstein utiliza a metáfora dos trilhos que foram dispostos mais oumenos sao longo de uma distância infinita e sobre os quais o emprego de uma regra se faz automaticamente. Ora, os trilhos não poderiam de grande utilidade a não ser que a experiência da compreensão nos fornecesse uma representação não ambígua da parte invisível que vai para além dos exemplos que foram efetivamente vistos, e isso até o infinito. Mas é justamente isso que constitui o problema. Como a compreensão pode oferecer àquele que utiliza a regra a certeza de que ele está e continuará, em todas as circunstâncias, sobre os trilhos da utilização correta? Mesmo se o uso de uma palavra obedecesse a regras estritas, ainda seria válido se colocar o problema que resulta do que chamamos o “paradoxo de Wittgenstein”, ou, como seria melhor chamá-lo, o “paradoxo de Kripke”.



Regularidades, Determinismo e Liberdade



Por razões evidentes, Bourdieu é particularmente sensível à confusão entre dois usos muito diferentes da palavra “regra” – especialmente entre sociólogos: a regra como hipótese explicativa formulada pelo teórico para dar conta daquilo que ele observa; e a regra como princípio que governa realmente a prática dos agentes envolvidos. É essa confusão que leva a “considerar como princípio da prática dos agentes, a teoria que se deve elaborar para dar razão a essa prática” [CD, p. 76]. Essencialmente, é por causa dessa confusão quase inevitável que Bourdieu prefere finalmente se exprimir em termos de estratégias, de habitus ou de disposições, ao invés de regras. Em Coisas Ditas, ele explica que não se deve confundir a existência de regularidades com a presença de uma regra: “O jogo social é regrado, é um lugar de regularidades. As coisas se passam de maneira regular: os herdeiros ricos se casam regularmente com as caçulas ricas. Isso não quer dizer que seja regulamentado que herdeiros ricos devem se casar com caçulas ricas. Mesmo que nós possamos pensar que casar uma herdeira (rica e, a fortiori, uma caçula pobre) é um erro e mesmo, se aos olhos dos parentes, por exemplo, isso é uma falha. Eu posso dizer que toda a minha reflexão vem daí: como as condutas podem ser regradas sem serem produtos da obediência à uma regra? [...] Para construir um modelo do jogo que não seja nem um simples registro das normas explícitas, nem a enunciação de regularidades e ao mesmo tempo integrando tanto umas quanto as outras, deve-se refletir sobre os modos de existência diferentes dos princípios de regulamentação e da regularidade das práticas: existe, com certeza, o habitus, uma disposição regrada que engendra condições regradas e regulares a despeito de toda referência a regras.; e, nas sociedades onde o trabalho de codificação ainda não é muito avançado, o habitus é o princípio da maior parte das práticas. [CD, p.81-82]

Leibniz diz que nós temos um habitus por alguma coisa quando essa coisa se torna ordinária em virtude de uma disposição do agente (HABITUS est ad id quod solet fieri ex dispositione agentis) e define o espontâneo como aquilo cujo princípio reside no agente (SPONTANEUM est, cum principium agentis in agente)[1]. O que a liberdade adiciona a isso é a ideia de uma decisão apoiada sobre uma deliberação. A liberdade pode ser definida como “a espontaneidade agregada à deliberação” ou ainda como uma espontaneidade racional ou inteligente. Os animais são dotados de espontaneidade mas, não sendo dotados de razão, não são capazes de agir livremente. O fato de que a ação é produto de um habitus não ameaça a espontaneidade da ação na medida em que esta não é o produto de uma coerção externa, mas de uma disposição que se localiza no agente mesmo. Mas, na medida em que o exercício da liberdade inclui a deliberação, uma boa parte de nossas ações e, em particular aquelas que resultam de um habitus, são simplesmente espontâneas e não propriamente livres – mesmo que elas também não sejam fruto de uma coerção. Sobre esse ponto, pode-se observar que a razão pela qual a existência de determinismos - como os que a sociologia descreve - pode dar a impressão de ameaçar não somente a liberdade, mas também a espontaneidade das ações individuais, não provém absolutamente das regularidades que eles produzem no comportamento dos agentes: mas sobretudo do fato de que nós sentimos ainda hoje uma dificuldade muito maior que Aristóteles e Leibniz em fazer a distinção entre as ações que possuem o seu princípio no agente, e aquelas que possuem seu princípio fora dele e que podem ocorrer não somente sem ele, mas igualmente contra ele. Nós distinguimos sem problemas as ações que merecem ser chamadas “livres” daquelas que são obrigatórias. Mas o problema filosófico da liberdade aparece junto com a ideia da coerção insuspeita e da prisão invisível. Se nós somos mais ou menos aterrorizados pela ideia de que poderíamos não ser livres, é porque temos uma certa ideia da condição insuportável na qual viveríamos se não o fossemos. E, como observa Dennett, a literatura nos fornece múltiplas analogias que são igualmente inquietantes: “Não ser livre seria qualquer coisa como estar na prisão, ou estar hipnotizado, ou estar paralisado, ou ser uma marionete, ou... (pode-se continuar a lista).[2]

Dennett pensa que essas analogias não são simplesmente ilustrações, mas que elas estão de certa maneira na origem e no fundamento do problema filosófico mesmo: “Vocês estão certos de que não estão em uma espécie de prisão? Agora nós somos convidados a considerar uma cadeia de transformações que nos leva de prisões evidentes a prisões menos evidentes (mas não menos assustadoras), até prisões completamente invisíveis e imperceptíveis (mas não menos assustadoras). Considerem um cervo no parque Magdalen College. Ele está preso? Sim, mas não muito. O cerco é muito vasto. Suponhamos que nós o transportemos para um local mais vasto, a New Forest, com uma cerca ao redor dele. Ele ainda estaria preso? Me disseram que no estado do Maine, os cervos não se deslocam mais do que cinco milhas do seu local de nascença durante toda a vida. Se uma cerca fosse colocada fora dos limites normais (que pode ser ultrapassada sem nenhum entrave) das peregrinações que um cervo efetua durante a sua vida, o cervo nesse espaço estaria aprisionado? Talvez. Mas notem que o fato de que essa cerca tenha sido instalada por alguém faz diferença quanto às nossas intuições. Vocês se sentem aprisionados no planeta terra – da mesma maneira como Napoleão foi imobilizado na ilha de Elba? Uma coisa é nascer e viver na ilha de Elba, outra é ser colocado e mantido na mesma ilha por outra pessoa. Uma prisão sem um carcereiro não é uma prisão. Que ela seja ou não indesejável, depende de outras características; depende da maneira (se existe apenas uma) pela qual essa prisão impõe coerções que paralisam o estilo de vida de seus habitantes.[3]

Estas considerações são suficientes para explicar porque as teorias que invocam mecanismos e determinismos sociais para explicar nossas ações aparentemente mais livres e pessoais, são geralmente compreendidas como equivalentes à negação pura e simples da realidade daquilo que nós chamamos de liberdade e personalidade. O que é incômodo e mesmo insuportável não é que a liberdade da nossa ação se exerça dentro dos limites que talvez sejam diferentes daqueles que nós havíamos imaginados (se bem que eles poderiam ser exatamente o que devem ser, e nós continuaríamos, todavia, livres) mas sim a ideia de que nós poderíamos ser, mesmo em nossas ações mais livres, manipulados inteiramente por agentes invisíveis que, como diz Dennett “rivalizam contra nós pelo controle dos nossos corpos (ou, o que é ainda mais grave, de nossas almas[4] ), que estão aliados contra nós e possuem interesses contrários ou, ao menos, independentes dos nossos.” Nós consideramos óbvio, por exemplo, que o tipo de liberdade do qual nós necessitamos e que é o único digno de ser possuído, é aquele em que nós somos livres unicamente se “nós pudéssemos (sempre) ter feito de outra maneira”. Mas, como observa Dennett, é exatamente essa suposição, e não as descrições que se tenta dar das condições necessárias e suficientes para que nós tenhamos efetivamente esse tipo de poder, que deve ser examinada seriamente. Leibniz não via, por sua parte, nenhuma contradição no fato de que uma ação pudesse ser completamente determinada e, ao mesmo tempo, perfeitamente livre.

No jogo social, certos comportamentos regulares são resultado direto da vontade de conformar-se a regras codificadas e reconhecidas. Nesse caso, a regularidade é o produto da regra e a obediência à regra é um ato intencional, que implica o conhecimento e a compreensão daquilo que a regra dita para o caso em questão. Por outro lado, encontramos regularidades que são explicadas de maneira puramente causal com a ajuda de “mecanismos” subjacentes, em um sentido que não é muito diferente das explicações que se dão ao comportamento regular de objetos naturais. Aliás, tem-se a tendência a supor, tanto nas ciências do homem como nas ciências da natureza, que, onde quer que existam regularidades características, existem também mecanismos aos quais elas se devem e que, se nós os conhecêssemos, também poderíamos compreendê-las. Mas existe igualmente uma certa quantidade de condutas sociais regulares – e é provavelmente o que ocorre na maior parte dos casos – que não parecem poder ser explicada de maneira satisfatória nem pela invocação de regras a partir das quais os agentes alinham intencionalmente seus comportamentos, nem em termos de causalidade bruta. A esse nível intermediário é que intervém a noção crucial de habitus em Bourdieu.

Observemos de passagem que, se Wittgenstein critica sistematicamente a tendência a conceber a ação da regra como se exercendo da mesma maneira que a de uma lei causal – como se a regra se parecesse de qualquer maneira a uma força motriz que obriga o seguidor da regra a ir em uma direção determinada – ele rejeita com o mesmo vigor uma outra forma de mitologia que consiste em conceber as leis da natureza como as regras às quais os fenômenos naturais são obrigados a se conformar. No seu “Curso sobre a liberdade da vontade”, ele sublinha que a lei é uma expressão de uma regularidade, mas ela não é a causa de existência dessa regularidade, como ela o seria se nós pudéssemos dizer que os objetos são obrigados pela lei mesma a se comportar como eles se comportam. Wittgenstein conclui disso que, mesmo se as decisões apresentassem regularidades exprimíveis por leis, não se saberia bem por que isso deveria impedi-las de serem livres: “Não há razão pela qual eu não seria livre, mesmo se houvesse uma regularidade nas decisões. Não há nada que diga respeito à regularidade que possa tornar algo livre ou não. A noção de coerção existe se vocês pensam na regularidade como uma coerção – como aquela produzida pelos trilhos – se, além dessa noção de regularidade, entra em jogo a noção de: “Aquilo deve se movimentar de determinada maneira porque os trilhos estão postos desta maneira”.” [LV, p.88] Wittgenstein sustenta que os usos que nós fazemos de expressões como “livre”, “responsável”, etc., “são independentes da questão de saber se existem ou não leis da natureza” [CW, p.44]. Elas também são, a seus olhos, igualmente independentes da questão de saber se existem, por exemplo, leis da psicologia ou da sociologia. Consequentemente, as regularidades características que a sociologia e as ciências humanas conseguem geralmente colocar em evidência no comportamento dos agentes individuais não poderiam, dessa maneira, constituir razão para negar que suas ações pudessem permanecer, ainda sim, livres e responsáveis.



O sentido do jogo



Bourdieu recorre à noção de habitus para tentar achar uma via intermediária entre o objetivismo – que ele critica nos estruturalistas como Lévi-Strauss – e o espontaneísmo que os filósofos do sujeito tentam opor àquele. Os estruturalistas pensam o mundo social “como espaço de relações objetivas transcendente aos agentes e irredutível às interações entre os indivíduos.” [CD, p.18]. Bourdieu quer reintroduzir o agente que o estruturalismo reduz ao estado de “simples epifenômenos da estrutura” [CD, p.19], mas não o sujeito da tradição “humanista”, que se supõem agir em função de intenções que ele mesmo conhece e domina (e não por causas determinantes com relação às quais ele tudo ignora e sobre as quais ele não tem nenhuma compreensão real). Esse é outro ponto com relação ao qual Bourdieu se aproxima de Wittgenstein, para quem a solução também não consiste em escolher entre a noção tradicional do sujeito que fala e age – que é, de fato, mais que suspeito – e a ideia de dispositivos impessoais autônomos que constituem de alguma maneira os verdadeiros produtores de enunciações e ações das quais os supostos sujeitos se creem ingenuamente os autores. Essas duas concepções são igualmente místicas e existe, na realidade, uma terceira via.

Um dos maiores inconvenientes da noção de regra é, aos olhos de Bourdieu, que, como ela pode ser aplicada sem nenhuma precisão a coisas extremamente diferentes, ela permite mascarar oposições essenciais como, por exemplo, aquela que existe entre a sua própria posição e a de Lévi-Strauss: “Me parece que a oposição é mascarada pela ambiguidade da palavra regra, que permite o desaparecimento do próprio problema que eu tento colocar: não sabemos jamais se, por regra, entendemos um princípio do tipo jurídico ou quase jurídico mais ou menos consciente produzido e dominado pelos agentes, ou um conjunto de regularidades objetivas que se impõem a todos aqueles que entram no jogo. É a um desses dois sentidos que nós nos referimos quando falamos de regra do jogo. Mas nós podemos encontrar um terceiro sentido, aquele do modelo, do princípio construído pelo acadêmico para compreender o jogo. Eu creio que ao suprimir essas distinções nós corremos o risco de cair em um dos paralogismos mais funestos nas ciências humanas: aquele que consiste em confundir, segundo as velhas palavras de Marx, “as coisas da lógica pela lógica das coisas”. [Wittgenstein diria: “predica-se à coisa aquilo que reside no seu modo de representação.”] Para fugir disso, é necessário inscrever na teoria o princípio real das estratégias, ou seja, o seu sentido prático ou, se preferirmos, aquilo que os atletas chamam de o sentido do jogo, como domínio prático da sua lógica ou da necessidade imanente de um jogo e que se adquire pela experiência deste – funcionando na consciência e no discurso tal como os vivemos (à maneira das técnicas do corpo, por exemplo). Noções como a de habitus (ou sistema de disposições), de senso prático e de estratégia, estão ligadas ao esforço para sair do objetivismo estruturalista sem cair no subjetivismo.” [CD, p. 76-77]

Como Wittgenstein observou diversas vezes, a aprendizagem de um jogo pode passar pela formulação e aquisição explícita das regras que governam o jogo. Mas nós podemos adquirir igualmente o tipo de comportamento regular que corresponde ao domínio prático do jogo sem que a enunciação de qualquer regra tenha sido feita no processo. Eu posso saber como continuar corretamente uma sequência de números porque a – ou talvez se deva dizer, uma – fórmula algébrica que a engendra me tenha vindo ao espírito; mas eu posso também estar seguro de saber continuar a sequência sem que nenhuma regra em particular tenha passado pela cabeça, ou seja, sem dispor de nada além dos exemplos que me foram fornecidos. O caso da aprendizagem da linguagem é mais do segundo tipo que do primeiro. Por fim, existe a situação em que um observador externo procura explicar o jogo e que, para fazê-lo, formula hipóteses sobre as regras que os jogadores poderiam ter obedecido e que, talvez, obedeçam realmente, ou seja, procura formular um sistema de regras no qual o conhecimento tácito ou explícito constituiria uma condição suficiente (mas não forçosamente necessária ) para que as regularidades características que se observam no comportamento dos atores possam produzir-se efetivamente.



A criatividade e as regras



Os serviços teóricos que Bourdieu exige de sua noção de habitus ou de noções semelhantes, são evidentemente numerosos. O habitus é aquilo que permite compreender como “as condutas podem ser orientadas com relação a seus fins sem serem conscientemente dirigidas em direção a esses fins ou por esses fins” [CD, p.20]. “O habitus, ele diz ainda, possui com o mundo social do qual ele é produto uma verdadeira cumplicidade ontológica, princípio de um conhecimento sem consciência, de uma intencionalidade sem intenção e de um domínio prático das regularidades do mundo que permite a antecipação do que está por vir (o futuro, o porvir) sem a necessidade de colocá-lo enquanto tal.” [CD, p.22] E ele lamenta que se aplique às suas análises “ as mesmas alternativas que a noção de habitus visa descartar, como as de consciente e inconsciente, de explicação por causas determinantes ou por causas finais.” [CD, p.20]. A noção de habitus permite explicar como o sujeito da prática pode ser determinado e, ao mesmo tempo, agente. Não sendo de natureza mental (existem habitus que são apenas corporais), o habitus está para cá da distinção entre consciente/inconsciente, ele está igualmente antes do que seria uma simples coerção causal e daquilo que é livre no sentido em que ele escapa, pelo contrário, a qualquer tipo de coerção.

Bourdieu insiste particularmente no aspecto “criador” das práticas dirigidas por um habitus: “Eu queria reagir contra a orientação de Saussure (que, como eu mostrei no Sentido Prático, concebe a prática como simples execução) e do estruturalismo. Muito próximo de Chomsky, que se preocupou em dar uma intenção ativa, inventiva, à prática (ele pareceu a alguns defensores do personalismo como um baluarte da liberdade contra o determinismo estruturalista). Eu queria insistir nas capacidades geradoras das disposições, ao mesmo tempo considerando que elas se tratam de disposições adquiridas, socialmente constituídas. Portanto, pode-se perceber o quanto é absurda a classificação que inclui no estruturalismo destruidor do sujeito, um trabalho que foi orientado pela vontade de reintroduzir a prática do agente, sua capacidade de invenção e improvisação. Entretanto, eu queria relembrar que essa capacidade criadora, ativa, inventiva não era aquela do sujeito transcendental da tradição idealista, mas sim a de um sujeito que age”[CD, p.23]

Bourdieu às vezes exprime esse aspecto dizendo que, mesmo em jogos muito complexos como as trocas matrimoniais ou as práticas rituais, intervém um sistema de disposições que nós podemos pensar como análogo à gramática gerativa de Chomsky – “ à diferença de que se trata de disposições adquiridas pela experiência, portanto variáveis segundo o lugar e o momento. Esse “sentido do jogo”, como nós dizemos em francês, é o que permite o engendrar de uma infinidade de jogadas adaptadas a uma infinidade de situações possíveis que nenhuma regra, por mais complexa que seja, pode prever. Portanto, eu substitui as regras do parentesco pelas estratégias matrimoniais. [CD, p.19].

A referência a Chomsky nesse contexto é, à primeira vista, um pouco surpreendente, porque Chomsky é justamente um representante típico da teoria da linguagem como cálculo, cujo modelo é atribuído a Frege e que Wittgenstein criticou, e finalmente abandonou por completo. Em si mesma, a capacidade de engendrar uma infinidade de frases gramaticais corretas e de lhes atribuir interpretações semânticas aplicando regras puramente formais, não contém nada que ultrapasse intrinsecamente as possibilidades de um mecanismo. No mais, Katz e Fodor sublinharam explicitamente que a questão de saber qual interpretação semântica é atribuída a uma frase deve poder ser decidida por cálculos formais, sem que tenhamos que recorrer a qualquer tipo de intuição linguística: “A necessidade de possuir uma teoria semântica formal deriva da necessidade de evitar a vacuidade; pois uma teoria semântica é vazia na medida em que deve se apoiar de maneira essencial sobre intuições ou conhecimentos intuitivos do locutor, para que as regras da teoria sejam aplicadas corretamente.[5] Que se trate do aspecto semântico ou do aspecto sintático da competência, nos dois casos as regras em questão devem ser formalmente representáveis e suas operações devem ser mecanicamente efetuáveis. Nada na concepção que Chomsky possuía da natureza da competência linguística implicava que seu possuidor devesse necessariamente ser um ser consciente ou uma pessoa. A questão colocada era sobretudo: que tipo de autômato (abstrato) deve ser um sistema físico qualquer para ser capaz de construir e interpretar, como nós o fazemos, um número potencialmente ilimitado de frases de uma língua natural?

A criatividade propriamente dita - na medida em que ela se distingue da geratividade formal que resulta da simples recursividade das regras – se situa sobretudo em outro lugar, ao nível daquilo que Chomsky chama de “criatividade do uso”, ou seja, a capacidade de utilizar de maneira pertinente uma infinidade de frases diferentes – e, na maioria das vezes, novas – em situações igualmente inéditas. É somente nesse nível que se pode colocar como questão algo como o que Bourdieu chama de sentido do jogo ou de intuições do senso prático. Mas a linguística gerativa não possui nada a dizer sobre esse tipo de coisa, simplesmente porque ela é uma teoria da competência e não uma teoria do uso, ou talvez mais exatamente porque o aspecto da competência – se ainda se pode falar de competência – que é representado pela posses de um conhecimento ou de um senso prático que não pode ser explicitado em termos de regras, e que não diz respeito a ela de nenhuma maneira. Se, como diz Bourdieu, alguns acreditaram poder encontrar em Chomsky argumentos a favor de uma concepção personalista do sujeito criador, só pode ser ao preço de um mal entendido fundamental: que Chomsky, de resto, manteve sistematicamente.

Também não se deve imaginar que as regras da linguística chomskiniana são mais próximas que os modelos teóricos dos estruturalistas daquilo que Bourdieu chama “o princípio da prática dos agentes”, em oposição à teoria que foi construída para compreender a prática. O status deles é e continua sendo essencialmente aquele de hipóteses explicativas, mesmo se nos referimos a elas como regras que se supõem de conhecimento do locutor e que ele aplica tacitamente. Wittgensteinianos como Baker e Hacker sustentaram que Wittgenstein havia de alguma maneira desacreditado antecipadamente uma empreitada como a de Chomsky e, de maneira mais geral, toda tentativa de construção de uma teoria sistemática da significação concebida a partir do modelo fregiano de linguagem como cálculo. Isso se deve à observância de que as regras que nós não conhecemos e às quais somos reduzidos – como o faz a linguística que procura explicar o nosso comportamento formulando hipóteses – dificilmente exercem uma função normativa real. “Não existe comportamento normativo, já que as normas esperam por ser descobertas.”[6]

Eu creio que Baker e Hacker vão, nesse ponto, um pouco longe demais. Isso porque Wittgenstein insiste sobre as diferenças importantes que tendem a ser negligenciadas, mas não formula jamais proibições, nem contra o uso de noções como as de “regra tácita” ou de “ regra inconsciente”, nem contra outras de qualquer tipo. Poderia ser que noções desse tipo se revelem finalmente impossíveis de serem utilizadas de maneira coerente. Mas o que importa, aos olhos de Wittgenstein, é unicamente saber o que é feito no momento em que uma palavra ou expressão é utilizada, ou seja, não esquecer que uma regra conhecida e que está realmente implicada no jogo não se opõe a uma regra invocada a título de hipótese explicativa, simplesmente “como a expressão ‘Uma cadeira que eu vejo’ à expressão ‘Uma cadeira que eu não vejo porque está atrás de mim’ [GP, p.72].



Wittgenstein e a aplicação da regra



Noções como as de inovação, invenção, improvisação, etc., às quais Bourdieu deseja dar o lugar que elas merecem, podem interferir de duas maneiras bem diferentes na prática da obediência de uma regra. Uma invenção pode ser necessária porque a regra com a qual lidamos deixa subsistir uma margem de indeterminação mais ou menos importante, a saber, a aplicação da regra a um caso determinado pode provocar um problema de interpretação que não se pode esperar resolver com a invocação de uma regra suplementar que estabeleça a maneira correta de interpretá-la. A maior parte das regras que nós utilizamos são deste tipo e necessitam ser aplicadas, como se costuma a dizer, com inteligência (jugement) ou discernimento. Em numerosos casos, saber aplicar uma regra de maneira conveniente quer dizer, entre outras coisas, ser capaz de interpretá-la em função das circunstâncias e mesmo, eventualmente, de ignorá-la ou transgredi-la inteligentemente. Reflitamos sobre o que diz Musil sobre as regras morais, que são um pouco como uma peneira cujos buracos são no mínimo tão importantes quanto a parte compacta do dispositivo. Algumas regras dão a impressão de funcionar à maneira de um mecanismo porque elas determinam sua aplicação de uma maneira a não deixar nenhum espaço para qualquer tipo de iniciativa. Já outras limitam de maneira significativa a liberdade de movimento do seguidor mas não determinam de maneira unívoca o movimento que deve ser efetuado a cada etapa da aplicação. Nos termos da metáfora utilizada por Wittgenstein, nós poderíamos dizer que, se as primeiras se aparentam aos trilhos, as segundas determinam simplesmente uma direção geral, e não um trajeto preciso.

Wittgenstein contesta, de maneira geral, a ideia de que as regras – se as tomamos como sendo do primeiro tipo – exercem sua ação ao modo de uma coerção causal. Ele diz, por exemplo, que nós deveríamos olhar a demonstração não como um processo que nos coage/obriga, mas antes como um processo que nos dirige (fuhrt). Essa é uma maneira, entre outras, de dizer que a regra guia a ação mas não a produz da mesma maneira que uma força produz um efeito. A regra se aplica justamente às ações e, sejam elas submissas ou não às regras, as ações pertencem de qualquer maneira a um domínio e provêm de uma lógica que não é a mesma dos fenômenos naturais.

Se formos sensíveis ao paradoxo cético que se supõe ter sido formulado por Wittgenstein a propósito do que é “seguir uma regra”, podemos nos sentir tentados a concluir que nenhuma regra – nem mesmo as que são perfeitamente explícitas e unívocas - determina realmente a sua aplicação. De fato, o paradoxo parece significar que, qualquer que seja a maneira pela qual alguém aplicasse uma regra, aquela seria compatível com o modo com que esta tivesse sido interpretada – de tal modo que a regra resultaria das aplicações que tivessem sido feitas até aquele momento. A sequência de aplicações passadas é aparentemente incapaz de impor qualquer restrição à aplicação futura, o que significa que para cada etapa da aplicação de uma regra um ato de criação ou invenção é necessário (em um sentido mais ou menos literal) para determinar o que deve ser feito.

Contrariamente ao que creem certos intérpretes, o paradoxo não representa evidentemente a posição de Wittgenstein. O autor das Investigações Filosóficas procura determinar uma posição mediana satisfatória entre o Charybde da concepção objetivista (ou seja, platônica) da significação da regra como contendo nela mesma todas as aplicações sem que qualquer contribuição de nossa parte tenha que intervir; e o Scylla do anarquismo criativista, segundo o qual tudo reside, pelo contrário, na contribuição que nós devemos fazer a cada vez.

McDowell diz a propósito de um tipo de platonismo naturalizado que se trata de substituí-lo por aquilo que ele chama de “platonismo rastejante”. Wittgenstein não rejeita a ideia (que poder-se-ia chamar de platônica) de que a significação da regra contém, de alguma maneira, a totalidade das aplicações futuras nela mesma, mas procura simplesmente eliminar aquilo que o platonismo rastejante inclui de misterioso e inquietante, ao sugerir que a significação não pode realizar semelhante façanha a menos que em virtude de poderes que não possuem nada de natural e que devem ser simplesmente mágicos.[7]

Aquilo que chamamos de “fazer a mesma coisa que anteriormente” ou “aplicar corretamente a regra” não é determinado em si, e depende de uma prática regular da aplicação, e só possui sentido no seio de uma prática desse gênero. Como diz Wittgenstein, é um erro crer que uma regra leva por si mesma a algum lugar, mesmo se a pessoa não a segue. E é também um erro crer que essa pessoa é capaz de selecionar uma só e única possibilidade em um espaço abstrato que não estivesse já delimitado e estruturado por propensões, aptidões e reações que são constitutivas do pertencimento do sujeito ao mundo humano e ao universo das práticas humanas em geral.

O conceito de “fazer a mesma coisa” não é portanto constituído em um mundo platônico de significações, mas constituído dentro de uma prática. Ele é portanto bem determinado, mesmo que não o seja do ponto de vista exterior à prática, o qual procura adotar a concepção platônica, no mau sentido do termo. Se nós necessitamos simultaneamente da regra e de uma intuição particular para determinar aquilo que ela nos comanda cada vez que nós queremos aplicá-la, isso significa que a regra é ela mesma impotente e inoperante, portanto, inútil. Wittgenstein às vezes ironiza a concepção intuicionista que diz, ou parece dizer, que nós necessitamos de uma intuição para saber que devemos escrever 3 depois de 2 na sequência de números inteiros naturais. Ao invés de dizer que uma intuição é necessária a cada etapa da aplicação de uma regra, ele observa que seria melhor falar de uma decisão. Mas ele acrescenta que isso seria igualmente enganoso, porque nós claramente não decidimos nada; no caso normal, a aplicação correta resulta tão pouco de uma decisão entre inúmeras possibilidades quanto de uma intuição da única possibilidade. Falar de uma decisão parece menos pior já que evitaria qualquer tentação de procurar uma justificação ou uma razão lá onde não existe nenhuma. Wittgenstein não sustenta, portanto, uma concepção decisionista da aplicação, mas procura simplesmente tirar o crédito de uma concepção intelectualista da ação da regra, a partir da qual a aplicação resulta a cada vez de um ato de conhecimento especial. A noção de decisão se coloca afim de deslocar o problema do domínio do conhecimento para o domínio da ação: o ponto importante é que a aprendizagem da regra possui como consequência o fato de que, em determinado estágio da aplicação, nós fazemos, sem hesitar, algo sem qualquer razão em particular, para além da própria regra. Não é verdadeiro que agir de acordo com um regra queira sempre dizer agir de acordo com a interpretação de uma regra. E a concordância que resulta entre aqueles que a sequem,na aplicação, não é uma concordância em termos de interpretação, mas sim em suas ações.

É compreensível que o sociólogo possa se sentir incomodado pelo uso extremamente geral que Wittgenstein faz de termos como “ regra” ou “ convenção”. Mesmo que ele seja particularmente sensível à distinção que deve ser feita entre uma regra que participa realmente da ação do jogo e uma regra que simplesmente explique essa ação para um observador externo, as regras às quais ele se refere não são evidentemente regras explícitas, nem forçosamente regras que os jogadores estariam dispostos a reconhecer – caso fossem questionados - como sendo as regras que eles aplicam. Wittgenstein diz das proposições que ele chama de “regras gramaticais” que elas geralmente não são formuladas e que raramente constituem objeto de um aprendizado explícito. Nós as absorvemos com todo o resto ao aprender a linguagem, sem nos darmos conta. Dizer que alguém utiliza uma palavra conforme uma convenção qualquer não significa evidentemente que uma convenção qualquer tenha sido ensinada (passada). Nas suas lições dos anos 1932-1935, Wittgenstein esclarece esse ponto da seguinte forma: “A questão é a de saber o que é uma convenção. É uma ou outra das duas coisas, uma regra ou uma prática/treinamento. Uma convenção é estabelecida ao se dizer qualquer coisa em palavras por exemplo: “Todas as vezes que eu bater as mãos uma vez, vá até a porta, e se eu bater as mãos duas vezes, distancie-se da porta.” [...] Por uma convenção eu entendo que o uso de um signo está de acordo com os hábitos da linguagem ou com um treinamento (prática) linguístico. Pode ser que exista uma cadeia de convenções na base da qual se possa encontrar um hábito de linguagem ou um treinamento para se reagir de determinadas maneiras. Estas últimas, nós não chamamos ordinariamente de convenções, pois a esta palavra nós reservamos as convenções que são estabelecidas por signos. Nós podemos dizer que esses signos possuem o papel que possuem por causa de certos modos habituais de agir.” [CC, p. 112] Existem, portanto, casos nos quais a convenção é primeira e o hábitus linguístico segundo, e outros, provavelmente mais numerosos, nos quais a convenção é apenas um modo de designar o habitus linguístico em si mesmo.



O valor explicativo do conceito de habitus



Bourdieu caracteriza o habitus, no sentido no qual ele designa a palavra, como sendo “o produto da incorporação da necessidade objetiva”. “O habitus, necessidade feita virtude, produz estratégias que, mesmo não sendo produtos de intenção consciente de fins explicitamente determinados sobre a base de um conhecimento adequado das condições objetivas, nem de uma determinação mecânica de causas, se encontram objetivamente ajustados à situação. A ação que guia o “sentido do jogo” possui todas as aparências de ação racional que desenharia um observador imparcial, equipado com todas as informações úteis e capaz de dominá-las racionalmente. No entanto, ela não possui a razão como princípio. É suficiente pensar à decisão instantânea do jogador de tênis que vai em direção à rede em um momento inoportuno: compreendemos então que eessa resolução não possui nada em comum com a construção estudada que o treinador, após análise, elabora para compreender e para tirar dali lições comunicáveis.” [CD, p. 21] Evidentemente, não há nenhum sentido em dizer que os hábitos linguísticos pelos quais se interessa Wittgenstein constituem o produto da incorporação de uma necessidade objetiva qualquer. A tese da autonomia da gramática significa precisamente que as regras ou, se preferirmos, os hábitos linguísticos que correspondem ao domínio de uma linguagem, não demonstram uma necessidade preexistente, mas são eles mesmo a origem da necessidade, pelo menos da necessidade que Wittgenstein chama de “lógica” ou “gramatical” .

Não é obviamente o caso de abordar aqui o problema do grau de independência que o sociólogo está disposto a reconhecer a esse tipo de necessidade tendo em vista que, por razões evidentes, a necessidade pela qual ele se interessa deve ser a expressão de coerções eminentemente factuais de tipo social. É mais interessante se perguntar o que Bourdieu pode realmente esperar explicar com a sua noção de habitus. Na passagem que acaba de ser citada, ele nos diz que o habitus possui a capacidade de engendrar comportamentos que, mesmo sendo adquiridos, possuem todas as características do comportamento instintivo e que, mesmo não implicando aparentemente nenhuma forma de reflexão ou cálculo, produzem resultados que coincidem de maneira notável com aqueles que obteríamos por um cálculo racional. É fato que um treinamento apropriado é capaz de desenvolver em um sujeito mediano automatismos que, com relação ao resultado, possuem toda aparência de uma ação refletida e inteligente e que lhe dita “o que deve ser feito” precisamente no caso em que ações refletidas e inteligentes não são possíveis. Entretanto, não se adiciona grande coisa a uma constatação desse tipo simplesmente falando, como o fez Bourdieu, das “intuições de um 'senso prático' que é produto da exposição durável a condições semelhantes àquelas nas quais [os agentes] se localizam” [CD, p. 21]. Como observa – surpreso – Wittgenstein, nós sentimos uma propensão irresistível a crer que uma modificação significativa deve ter sido produzida no espírito ou no cérebro de alguém todas as vezes que essa pessoa tenha adquirido um hábito ou um modo de fazer regular. E nós pensamos que a explicação propriamente dita não poderia ser formulada a menos que formulássemos a descrição de um estado hipotético de um mecanismo mental ou cerebral que nós talvez descobriremos algum dia. É possível que com relação a esse ponto nós estejamos sempre como Lord Kelvin, que declarava não poder compreender um fenômeno antes de conseguir construí-lo como um modelo mecânico.

Bourdieu nos diz também que o habitus “pode servir de base para uma previsão (equivalente intelectual das antecipações práticas da experiência ordinária)”, a despeito do fato de que este “não encontra seu princípio em uma regra ou uma lei explícita” [CD, p. 96]. Wittgenstein diz da palavra “compreender” que ela serve ao mesmo tempo para designar uma experiência mental, que acontece fora da audição ou da pronúncia da palavra e, o que é bem diferente, como algo que é da natureza de uma aptidão ou de uma capacidade: “O uso da palavra 'compreender' repousa sobre o fato de que, na enorme maioria dos casos, no momento em que nós tenhamos efetuado certos testes, nós estamos preparados para predizer que um homem utilizará a palavra em questão de certas maneiras. Se esse não fosse esse o caso, não haveria mais nenhum interesse para nós na utilização da palavra “compreender”.” [CFM, p. 11-12] Mas Wittgenstein não pretende explicar – e eu não sei se há um modo satisfatório de fazê-lo – a maneira pela qual um processo de aprendizagem pode produzir o tipo de consequências sensivelmente incomparáveis ao pequeno número de exemplos e de situações que foram consideradas explicitamente - que nós caracterizamos com a ajuda da palavra “compreender”.

As explicações em termos de disposições ou de habitus podem ser suspeitas de permanecerem essencialmente verbais na medida em que não podem se tornar objeto de uma caracterização suficientemente independente da simples descrição do tipo de regularidade comportamental às quais elas correspondem. Como observou Quine, uma explicação disposicional se assemelha a um reconhecimento de dívida que se espera ser capaz de recuperar algum dia pela produção da descrição de uma propriedade estrutural correspondente, como faz o químico com relação ao predicado disposicional “solúvel em água”. No entanto, está claro que a legitimidade do uso de um termo disposicional não pode estar subordinada em todos os casos à esperança ou à promessa de uma redução deste tipo e que as disposições não podem ser irredutíveis sem serem também distorcidas (irrédentes) porque a ideia de uma espécie de “recuperação” não possui propriamente nenhum sentido neste caso e resulta de uma tendência deplorável quando se compara seu status ao de predicados como “solúvel em água”.

Em um dos raros desenvolvimentos que Wittgenstein consagra à noção de disposição, ele escreve: “Uma disposição é concebida como qualquer coisa que está sempre lá, através da qual se desenrola um comportamento. É análogo à estrutura de uma máquina e seu comportamento. Existem TRÊS enunciados diferentes que parecem dar sentido à proposição “A ama B”: (I) um enunciado não disposicional que concerne a um estado consciente, ou seja, os sentimentos; (2) um enunciado que diz que, em determinadas condições, A se comportará de uma determinada maneira, (3) um enunciado disposicional que diz que, se um certo processo ocorre no seu espírito, ele se comportará consequentemente de uma determinada maneira. Estes correspondem à descrição de uma ideia que designa seja um estado mental, seja um conjunto de reações, seja o estado de um mecanismo que possui por consequência o comportamento e certas sensações, simultaneamente. Parece que nós distinguimos aqui três significações para “A ama B”, mas não é o caso: (I) do que resulta que A ama B pois ele experimenta certos sentimentos, (2) do que resulta que A ama B ao se comportar de um determinada maneira. Estes dois casos apresentam significados da palavra ‘amor’. Mas o enunciado disposicional (3), que faz referência a um mecanismo, não é um enunciado autêntico, ele não nos oferece um significado novo. Os enunciados disposicionais são fundamentalmente enunciados sobre um mecanismo. A linguagem utiliza a analogia de uma máquina, que nos extravia constantemente. Em uma grande quantidade de casos, nossas palavras possuem a forma de enunciados disposicionais que fazem referência a um mecanismo, quer esse mecanismo exista ou não. No exemplo que se refere ao amor, ninguém possui a mínima ideia do tipo de mecanismo ao qual é feita referencia. O enunciado disposicional não nos diz nada sobre a natureza do amor, é apenas uma maneira de descrevê-lo. Das três significações, aquela disposicional é a única que não é realmente uma descrição. É na realidade um enunciado que diz respeito à gramática da palavra “amor”. “ [CC. p. 114-115].

Wittgenstein nota que a palavra “compreender” possui forma disposicional: “Mesmo não se referindo a uma maquinaria, como ela parece fazer, o que há por trás da gramática desse enunciado é a imagem de um mecanismo montado para reagir de determinadas maneiras. Nós acreditamos que, se pudéssemos ver somente a maquinaria, nós saberíamos o que é compreender.” [CC, p.115]

Uma das razões pela qual Bourdieu desconfia da ideia de mecanismo subjacente é justamente o fato de que as condutas que importam explicar não possuem o tipo de regularidade estrita que produziria um mecanismo. “As condutas engendradas pelo habitus não possuem a bela regularidade das condutas deduzidas de um princípio legislativo: o habitus possui parte de suas relações ligadas ao fluido e ao vago. Espontaneidade geradora que se afirma na confrontação improvisada com situações constantemente renovadas, ele obedece a uma lógica prática, aquela do fluido, do quase, que define a relação ordinária com o mundo.” [CD, p.96]. A noção de habitus ou uma outra do mesmo gênero parece efetivamente indispensável para entender de modo adequado regularidades de um certo tipo, que não são determinadas de maneira rígida, comportando em sua essência um elemento de plasticidade, de variabilidade e indeterminação. Elas também implicam adaptações, inovações e exceções de todos os tipo, regularidades que caracterizam precisamente o domínio da prática, da razão prática e do senso prático. Mas a dificuldade é que, como observa Wittgenstein, nós temos uma propensão irresistível a procurar um mecanismo lá onde não há nenhum e a crer que a explicação real não pode ser encontrada se não for a esse nível. O que parece evidente no caso da palavra “compreender” deveria sê-lo igualmente com relação à maioria dos termos que designam habitus linguísticos ou sociais: nós deveríamos resistir à tentação de nos crermos obrigados a continuar procurando uma espécie de máquina do não-mecânico. Boa parte da resistência que nós opomos às ideias de Bourdieu não provém, como se poderia crer, da hostilidade ao mecanismo, mas da tendência a crer que nós compreenderíamos a sociedade se conseguíssemos de alguma maneira ver a maquina social em ação.


Abreviações


CC Ludwig Wittgenstein, Les Cours de Cambridge 1932-1935, texto em inglês e tradução de Elisabeth Rigal, TER, 1992.

CD Pierre Bourdieu, Choses Dites, Minuit, 1987.

CFM Ludwig Wittgenstein, Cours sur les fondaments de mathématiques. Cambridge 1939, texto em inglês traduzido por Elisabeth Rigal, TER, 1995.

CW Oets Kolk Bouwsma, Conversations avec Wittgenstein (1949-1951), traduzido do inglês por Layla Raïd, Agone, 2001.

GP Ludwig Wittgenstein, Grammaire philosophique, traduzido de Maria-Anne, Galimmard, 1969.

LL Pierre Bourdieu, Leçon sur la leçon, Minuit, 1982.

PU Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen/ Philosophical Investigations, texto alemão e tradição em inglês de G.E.M. Ascombe, Blackwell, 1953/1998.





[1] Gottfried Wilhelm Leibniz, Opuscules & fragments inédits, publicados por Louis Coutirat, Gerog Olms, Hildesheim, 1996, p.474

[2] Daniel C. Dennett, Elbow Room: The Varietirs of Freee Will Worth Wanting, Clarendon Press, Oxford, 1984, p.5.

[3] Ibid., p.8.

[4] Ibid., p.7

[5] Jerrold J. Katz e Jerry A. Fodor, “The Structure of a Semantic Theory”, in The Structure of Language. Readings in the Philosophy of Language, Prentice-Hall In., Englewood Cliffs (NJ), 1964, p.501.

[6] G.P.Parker e P.M.S.Hacker, Language, Sense and Nonsense. A Critical Investigation into Modern Theories of Language, B. Blackwell, Oxford, 1984, p.313.

[7] John McDowell, Mind & World, Harvard UP, Cambridge (Mass.), 1994, p. 176-177.





13 set 2010

Coyote

See? I always knew you had a little bit of coyote in you. When you see the light of a star what you are actually seeing is the impulse that your optic nerve makes of it, like a dawg star, or, in other words, you cant' be Sirius. There is always paws in between.

15 ago 2010

A EFICÁCIA SIMBÓLICA
Teorias Antropológicas e Teológicas dos Símbolos


I

Chegamos em Matão - SP dia 05/06/2010 por volta das 8 horas da manhã. O objetivo era entrevistar três pessoas que participavam ativamente da organização do Corpus Christi na cidade. Matão é conhecida nacionalmente pelos famosos tapetes feitos pela comunidade nos últimos 62 anos para a celebração deste acontecimento religioso.
Meu grupo, formado por mais 7 pessoas, deveria abordar os seguintes temas: ritual, parentesco e cultura material. Eu fiquei responsável pela entrevista com o produtor dos moldes de metal utilizados para a confecção do tapete e também aproveitei para conversar com pessoas que estavam próximas à Igreja Matriz - local da Missa do Corpus Christi e ponto de partida da Procissão. Deixamos a cidade às 15 hs com o compromisso de retornar dia 10/06/2010, uma quinta-feira, quando a celebração do Santíssimo Sacramento seria consumada.

Na quinta-feira, portanto, saímos de Araraquara às 6 horas da manhã em direção à Matão, com uma entrevista já marcada com o assessor do prefeito da cidade. Quando chegamos a cidade parecia estar acordada há mais tempo do que nós: carros com o capô levantado ao som de Lady Gaga, jovens metaleiros e patricinhas bebendo cerveja, um jornalista da Globo andando de um lado para o outro e decorando sua fala, crianças gritando, homens carregando latões de dolomita tingida (material utilizado para fazer os tapetes) para as ruas, mais jovens tocando violão e bebendo vinho e mães, pais, crianças, jovens e velhinhas acocoradas distribuindo pó colorido pelas ruas. Afinal de contas os habitantes de Matão acordavam às 3 horas da manhã para começar a organizar a cidade. Mas a cidade ainda estava relativamente vazia em comparação com a quantidade de pessoas que passaram a se acumular com o passar do tempo.

Enquanto meu grupo falava com o assessor, fui caminhar pela cidade. Barraquinhas de comida que vendiam pizza, maçã caramelizada, cocada, churrasquinho e sopas estavam sendo montadas. Em uma das ruas próximas à Matriz foi instalado um carossel e um pula-pula. Na praça central, uma feira que vendia todos os tipo de artesanato, com distribuição de mudas de plantas, cachorros para adoção, pessoas vendendo cachaça e conhaque, um 'distribuidor' de maconha e dois "representantes da tradição indígena chilena" com seus cocares e instrumentos musicais tocando músicas tradicionais e vendendo CD's.

Com o passar do dia os tapetes começavam a ficar prontos, extremamente coloridos e com temas que remetem à Eucaristia (cálices, pombas, peixes, a Santa Ceia, uvas etc) ou ao tema da Campanha da Fraternidade "Economia e Vida" que possuia como lema "Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro". Diversas paróquias da cidade e outros tipos de fraternidade se voltaram para a confecção de tapetes que abordavam a unidade humana no planeta Terra e conflitos internacionais, representando, por exemplo, bandeiras de países em guerra.

Antes do almoço um grupo de capoeira começa a se apresentar e as pessoas se concentram ao redor dos artistas que fazem seus desenhos nas ruas perpendiculares às da Procisssão. As ruas por onde esta passa são ornamentadas com tapetes dos grupos e paróquias reconhecidos pela prefeitura e, ao contrário do que ocorre entre os artistas convidados, não podem publicizar a autoria dos desenhos com assinaturas. Enquanto isso, no topo das escadarias da Igreja Matriz monta-se um palco (um show está marcado para ocorrer às 13h30) e, dentro dela, já foi celebrada a missa das 8hs, a "Hora Santa" e a missa das 11hs. Alto-falantes voltados para a Praça foram instalados na Igreja, através deles podemos ouvir o que se passa dentro dela. Uma mulher afirma: "Estamos aqui para celebrar o Corpus Christi. Para afirmar a todos que a Eucaristia não é um culto, é realidade." Enquanto isso algumas famílias terminavam de organizar os altares com pão e vinho que ficam expostos na janela de suas casas.

II


Helena - que participa há muitos anos do Corpus Christi em Matão e considera sua família como aquela que começou com a tradição de enfeitar o chão das ruas - também afirma a realidade da comemoração "é o dia em que Cristo caminha pelas ruas da cidade, por isso fazemos os tapetes. Deixamos as ruas bonitas para que Ele possa passar." Os donos das casas que ornamentaram suas janelas com pão e vinho afirmam que este foi o primeiro tipo de decoração feito no dia de Corpus Christ, os tapetes viriam depois. Segundo eles, trata-se de afirmar a realidade do corpo e do sangue do Salvador.
Ao falar com as pessoas pelas ruas ouvi reiteradamente as palavras 'tradição',' celebração', 'comemoração', 'afirmação', 'comunhão', 'partilha'... da verdade. A verdade da Eucaristia. Os mais religiosos geralmente evitavam palavras como 'festa', 'ritual', 'culto', especialmente quando questionados sobre a natureza do evento. Um dos exemplos é a declaração dos auto-falantes da Igreja: "a Eucaristia não é um culto". Inclusive nós, aprendizes de antropólogo, em busca do
ritual que caracteriza o Corpus Christi, fomos orientados a não utilizar esta palavra (nem as demais - festa e culto) ao falarmos com os nossos 'informantes' - seria melhor esperarmos para ver como estes davam suas próprias definições. Em uma das reuniões chegamos até a 'diagnosticar' a perspectiva profana e econômica do assessor da prefeitura pois este tinha se referido ao ritual como uma 'festa'.
Pressuponho que não podíamos utilizar as palavras já referidas porque acreditamos que elas possam ser tomadas como desrespeitosas pelo senso comum. Mariza Peirano, por exemplo, afirma que existe uma noção negativa do ritual que o situa no campo do não-racional, místico ou irracional. - uma mentira, no final das contas. Mas este é o ponto de vista da
nossa sociedade. Provavelmente foi a partir do reconhecimento desta palavra como algo pejorativo que os informantes as evitavam. Tratava-se, durante o Corpus Christi de mostrar o contrário: uma realidade cheia de sentido. Mas para nós, como atesta Peirano, trata-se de escapar ao senso comum, reconhecendo toda a eficácia e sentido do ritual. Esta seria a sua acepção positiva.

III

A Igreja, por sua vez, institui a celebração pública do Corpus Christi afirmando esta mesma positividade:


Os sacramentos são eficazes ex opere operato («pelo próprio facto de a acção sacramental ser realizada»), porque é Cristo que neles age e comunica a graça que significam, independentemente da santidade pessoal do ministro, ainda que os frutos dos sacramentos dependam também das disposições de quem os recebe
[1].


Ao lermos o Código Canônico e o Compêndio de Catecismo da Igreja Católica passamos várias vezes pelas palavras 'ritual', 'culto', 'rito', 'símbolo', 'festa', que são utilizadas como autodescrição de suas práticas religiosas. Aparentemente a Igreja também não compartilha do sentido negativo que geralmente se atribui a estas palavras. Importa saber como ela constituiu este saber.

IV

O Corpus Christi se insere na vida católica como uma festa de exaltação, adoração e contemplação do Sacramento da Eucaristia. Sua celebração é - não havendo impedimentos de ordem maior - obrigatória, fazendo parte do calendário litúrgico da Igreja. Junto com o Natal, a Epifania, a Ascensão, Santa Maria Mãe de Deus e sua Imaculada Conceição, e sua Assunção, São José, Santos Apóstolos Pedro e Paulo, e Todos os Santos, o Corpus Christi tem em comum o fato de ser uma festa católica que não é celebrada no Domingo. Este se configura como o dia de preceito primordial no qual o mistério pascoal deve ser celebrado. Temos portanto dois tipos de festa ou celebração: aqueles que se celebram no domingo, como o Sacramento da Eucaristia e aqueles que são realizados em outras datas - como a festa em questão, realizada em uma quinta-feira.
Portanto, o Corpus Christi é a festa católica que se volta para o mais importantes sacramento da Igreja, a Eucaristia.

A celebração da Eucaristia é o centro de toda a vida cristã, tanto para a Igreja universal como para as comunidades locais da mesma Igreja. Com efeito, «os outros sacramentos, como todos os ministérios eclesiásticos e as obras de apostolado, estão ligados à santíssima Eucaristia e a ela se ordenam. Efectivamente, na santíssima Eucaristia está contido todo o bem espiritual da Igreja, que é o próprio Cristo, nossa Páscoa e pão vivo, que, pela sua carne vivificada e vivificadora sob a acção do Espírito Santo, dá a vida aos homens, os quais são assim convidados e levados a oferecerem-se juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e toda a criação»[2]

A Eucaristia é o momento em que Jesus, antes de ser entregue e crucificado, reúne seus apóstolos e institui esta entrega, seu sacrifício. Como filho de seu Pai, vem ao mundo afirmar a Sua presença e Seu amor. Deus Pai gera seu Filho e apresenta-o com um corpo humano que será sacrificado a fim de salvar a humanidade que carregava em seu seio o fardo do pecado original. Assim Jesus, antes de seu sacrifício cruento na cruz, sacrifíca-se de forma incruenta na Eucaristia fundada na Última Ceia, toma nas suas mãos o pão e o distribui entre os apóstolos dizendo:

«Tomai e comei todos: isto é o meu corpo entregue por vós». Depois tomou nas suas mãos o cálice do vinho e disse-lhes: «tomai e bebei todos: este é o cálice do meu sangue para a nova e eterna aliança, derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados. Fazei isto em memória de mim»[3]

Jesus demanda sua rememorização, ou seja, que o seu sacrifício seja atualizado constantemente no ato da Eucaristia. A Igreja é a responsável por esta atualização, pela rememoração da Morte e Ressureição do corpo humano de Cristo que encarna o Verbo divino.Este momento de reunião entre Deus e o homem é atualizado todos os Domingos, seu ápice sendo a consagração da hóstia e do vinho. Neste momento ocorre a conversão da substância do pão na substância do Corpo de Cristo e do vinho na substância de seu Sangue. Este fenômeno é conhecido como transubstanciação.

A posição da Igreja Católica de que no momento da Eucaristia o que está presente é o próprio corpo e sangue de Cristo é atualmente um dogma, uma verdade da fé cristã. Entretanto, a declaração por parte da Igreja de que esta verdade é de fato verdadeira (um dogma) realizou -se em 1215 sob o papado*de Inocêncio III durante o Quarto Concílio de Latrão:

Em primeiro lugar, o sacro concílio afirma aberta e simplesmente que no sacramento da santíssima Eucaristia, - que alimenta, - depois da consagração do pão e do vinho, Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, está contido verdadeiramente, realmente e substancialmente sob a aparência de tais coisas sensíveis [o pão e o vinho].

Até aquele momento ainda eram relativamente aceitas, como reflexões internas à Igreja Católica ,a discussão sobre o que de fato se passava durante a Eucaristia e, consequentemente sobre a questão da transubstanciação.

Como visto anterioremente, a Eucaristia coloca em relação Deus e o Homem. Deus oferece suas palavras como comida corporificando a sua sabedoria. Ao comê-la se estabelece um acordo entre os que a ingerem. O verbo encarnado (feito carne, comida) é Jesus, mediador sacrificial entre Deus e e o Homem. Isto faria da Igreja, representante de Cristo, também um meio de mediação. Mas qual seria a natureza desta mediação?



Para começar a discussão podemos destacar Berengário de Tours, teólogo do século XI que negava a transubstanciação (ou seja, a verdadeira transformação do pão e do vinho em carne e corpo de Cristo) afirmando o caráter simbólico da Eucaristia (sendo por isso, considerado herege pela Igreja). Esta, portanto, seria o símbolo que representa a mediação entre Deus e o Homem. Este tipo de reflexão não era uma novidade entre os pensadores católicos e parece ter sido uma interpretação comum do Santíssimo Sacramento desde Santo Agostinho até Berengário[4]. Entre estes dois nomes podemos destacar o do monge Ratramnus (século IX) que afirmava que sacramento era apenas relativamente e mentalmente o corpo e o sangue de Cristo. Na época, esta afirmação inspirou um trabalho teológico marcante, De divsione naturae, do filósofo e monge Erígena. Utilizamos a palavra marcante porque a obra da início, no século IX, à disputa européia do mistério pascoal que se estenderia até chegar a Berengário, ultrapassando-o.

Erígena, em Da divisione naturae afirmava que a natureza - que era criação de Deus em sua forma manifesta - deve ser entendida como uma espécia de sacramento figurativo. O Homem, como criado por Deus, também seria sua forma manifesta. Quanto à substância de Deus, esta só poderia ser conhecida como figurativamente refletida ou manifesta na natureza. Deus, portanto, precipitaria a natureza, como uma forma que o representa, seu símbolo.

Ainda no século IX, encontramos o nome do abade Radbert que, apoiado na doutrina de Santo Ambrósio, defende o "metabolismo", afirmando que o conteúdo da Eucarista é realmente a carne e o sangue de Cristo. Na época ele foi considerado um grande dissidente em face às doutrinas agostinianas da Eucarista como símbolo, assim como Berengário, dois séculos depois, foi considerado herege e obrigado a se retratar. O século XI marca a luta da Igreja pelo direito a nomear seus próprios oficias independente do poder laico. Neste contexto, também importava que o Santíssimo Sacramento não fosse derivativo. Ou seja, melhor lidar com a própria substância do que apenas com a maneira como esta se manifesta, seu símbolo. Assim que o papado de Gregório VII (século XI) se caracterizou pela luta pela literalização ou realidade do sacramento e pela independência da Igreja na escolha de seus representantes, legitimada como uma batalha pela pureza religiosa frente ao poder secular. As escolhas da Igreja não representam as escolhas dos senhores feudais, o pão e o vinho não representam Deus - são Deus. O que se segue a isto tem consequências importantes: a Igreja surge como uma 'sociedade' religiosa de ordens e monastérios e substitui as discussões literalistas e intuitivas por um disputa escolástica aberta e racionalizável.

O quarto Concílio de Latrão incorpora e leva adiante estas duas características: os cânones deste encontro ecumênico se preocupam especialmente com as regras monásticas e códigos de conduta religiosa; e, no plano sacramental, a discussão sobre a transubstanciação muda sensivelmente de nível ao mesmo tempo em que se transforma em dogma.[5] Enquanto na época do figuracionismo agostiniano de Erigena e do literalismo ambrosiano de Radbert as substâncias do sacramento (pão e vinho) eram tratadas de forma bem direta - como coisas que mudavam ou não mudavam - a discussão entre nominalistas e realistas adotou ares conceituais extremamente sutis ao tratar da simbolização. A partir do século XII se discutia em termos de essência e acidente, entre a palavra e a coisa significada: Gilbertus Pictaviensis defendia a separação platônica dos universais - como a divindade - das propriedades acidentais que as acompanham. Esta foi a época do papado de Inocêncio III e de Tomás de Aquino.

A doutrina da transubstanciação foi desenvolvida a partir da filosofia realista da época anterior e se basou na suposição da realidade essencial das categorias verbais ou conceituais convencionais. Este tipo-essência imperceptível, ou universal, inerente a cada coisa particular de acordo com a sua espécie, era chamada substância. Os aspectos sensórios, perceptíveis que diferencia a coisa do seu genérico eram chamados acidente.[6]

Roy Wagner argumenta que isto transformou a base da reflexão da Época Medieval - a divina presença em comunicação com o clérigo e os adoradores - em uma espécie de tropo desencarnado, uma figura de linguagem que se movimentava independente da própria linguagem. Apesar desta divina presença não ter forma ( e nos parecer mística - o que de fato é, como as "forças de campo que atuam à distância" na teoria de Newton), ela é identificada a um milagre e acima de tudo, enquanto uma realidade superior.

A finalidade dos símbolos é adornar, na linguagem simples das coisas criadas, a expressão profunda do mistério, que é invisível. Todo símbolo litúrgico deve, pois, mergulhar-nos na grandeza do mistério, sem reduzir este, e sem banalizá-lo, e, como símbolo, deve ser simples, como simples é toda a criação visível. Sua principal função, sobretudo na liturgia, é, pois, comunicar-nos aquela verdade inefável, que brota do mistério de Deus e que, portanto, não se pode comunicar com palavras.[7]

Concepção muito diferente de Erigena, por exemplo, que via o mundo natural como uma figura ou manifestação de Deus. Para este, o divino se torna presente através do acidente da natureza. Considerado herege pela Igreja, foi forçado a se retratar quando concordou-se, em 1050, que acidente e substância divinas eram a mesma coisa e que a Eucarista se trataria de um milagre na medida em que o acidente do pão e do vinho se transformam em substância (divina). Depois, como mostrado anteriormente negocia-se a distinção filosófica entre acidente e substância. Ou seja, Deus é composto de acidente (aparência) e substância (essência), o pão também: a aparência do pão e a idéia universal do pão. Em 1215, o que se decide é que apesar da aparência do pão continuar sendo a mesma, a substância presente na liturgia eucarística efetuada pela Igreja é substância divina.
Neste contexto podemos compreender a extensão do Artigo 1, parágrafo 331 do Código Canônico.
[8]Inocêncio III parece ter sido o primeiro papa a definir-se enquanto "Vicário de Cristo na Terra". "Vicário" ou "Vigário" significa "que substitui outra coisa ou pessoa (no sentido platônico)" ou "outorgado por outrem". Cristo, Verbo divino encarnado, é mandado por Deus para revelar sua verdade divina. Em forma de homem, Jesus reune seus apóstolos e partilha seu sangue corpo, confiando nestes e em seus sucessores a perpetuação do Verbo. A Igreja, descendente destes apóstolos, detém portanto a graça fornecida por Deus aos homens através da morte sacrificial de seu Filho.

(...) Cristo, Cabeça do seu Corpo místico que é a Igreja, constituiu ministros do seu sacerdócio os Apóstolos e, por intermédio destes, os Bispos seus sucessores, a fim de o representarem a ele na mesma Igreja;e estes, por seu turno, comunicaram legitimamente o sagrado ministério recebido(...) Instaurou-se na Igreja, deste modo, a sucessão apostólica do sacerdócio ministerial, para glória de Deus e para o servidão do seu Povo e de toda a família humana, que deve ser orientada para o mesmo Deus.

Esta multiforme função tem como princípio a ininterrupta pregação do Evangelho,e como ápice e fonte de toda a vida cristã o sacrifício eucarístico,que os mesmos sacerdotes, enquanto fazem as vezes da pessoa de Cristo-Cabeça e em nome dos membros do seu Corpo místico, bem como no seu pessoal,oferecem ao Pai, no Espírito Santo; e o qual sacrifício, depois, é integrado pela refeição sagrada, na qual os fiéis, ao participarem dum único corpo de Cristo, se tornam também eles um só corpo (cf. 1 Cor. 10, 16 s.).[9]

Detentora exclusiva oficial da Graça Divina na Terra, a Igreja estabelece em 1300 o que podemos denominar (e que a Igreja também denomina) "economia sacramental". Munida do capital provido por Deus (a substância divina), a Igreja passa a produzir indulgências - um produto sacramental - em larga escala. O vicário de Cristo na Terra podia agora interceder junto à Deus para diminuir, por exemplo, a penitência no purgatório. Podia-se mesmo adquirir tal produto para terceiros. "Todos os fiéis podem adquirir indulgências (...) para si mesmos ou para aplicá-las aos defuntos" (CDC, cân 994).[10]



O que nos importa com relação a esta produção sagrada é a mudança com relação à interpretação católica literal do sacramento. Radbert, em contraposição à Erigena, defendia que a Igreja e os Padres conduziam a Eucaristia de forma a transformar o acidente do pão e do vinho na substância da presença divina. Com a "economia sacramental" a Igreja passa a transformar a substância divina no acidente da indulgência e outras doações seculares. Segundo Wagner o ocorre é uma mudança de foco que transfere a preocupação com "a natureza da presença divina [na Eucarista ] para a questão da sua administração humana".[11]Mas a isto voltaremos posteriormente.

V

A Igreja, através de todo este percurso reflexivo lida com uma questão bem específica: o simbolismo da eucaristia. Como pão e vinho podem ligar Deus e o Homem ou, posto de outra forma, como duas espécies mundanas, históricas e visíveis podem significar uma realidade divina e eterna? E mais do que isto, como estes acidentes podem presentificar esta realidade? Os teólogos tinham que lidar com unidades efêmeras, opacas e arbitrárias como a sociedade humana, as coisas da natureza, o pão e o vinho para que elas pudessem ser transparentes ao absoluto mistério divino - o invisível e infinito.
Por isso os sacramentos - entre eles, a Eucaristia - são também conhecidos pela Igreja como
Santos Mistérios.

A palavra sacramento tem origem no termo latino sacramentum que corresponde ao termo grego mystêrion. Mystêrion não tem a conotação de mistério, no sentido de misterioso ou segredo. Seu sentido é oculto, inefável, grandioso, incompreensível. O plural de mystêrion é mystêria.[12]

E consta ainda na palavra dois outros importantes aspectos ,"O termo sacramentum é formado por dois outros termos: a) sacra: significa sagrado ou santo; b) mentum: de memorale, memória não no sentido de lembrança, mas de tornar novamente presente, repetido.»[13]

"Fazei isto em memória de mim" portanto é muito mais do que lembrar um acontecimento passado - o sacrifício de Cristo - perdido no nosso tempo histórico, indo além do simples recontar um conto de salvação humana. É mais propriamente experimentá-la - todos os Domingos - e confirmar essa re-vivência publicamente durante o Corpus Christi. Tratar o pão, o vinho e o processo de sua transformação em carne e sangue como processos substancialmente verdadeiros implica em importantes afirmações sobre símbolos e eficácia.

Segundo a Igreja Católica, a Eucaristia e a sua celebração aos domingos e durante o Corpus Christi fazem parte da sua liturgia, ou seja, de um conjunto de cultos cujos desdobramentos presenciamos em seus ritos. Estes cultos são celebrados através do uso de "sinais e símbolos", "palavras e ações", "canto e música" e "santas imagens".[14]Destes quatro elementos nos focaremos nos dois primeiros por serem de maior interesse para o trabalho.
O culto ou ritual eucarístico estabelece uma comunicação entre Deus e o Homem, este último por ser ao mesmo tempo um ser espiritual e corporal exprime e percebe as realidades espirituais através de sinais e símbolos materiais. A linguagem é, portanto, o meio de comunicação fundamental do homem em suas relações sociais e nas suas relações com Deus - e sendo este seu único meio de conhecimento, é através das criações sensíveis, dos acidentes, que Deus se comunica com ele. Assim, por exemplo, a verdade divina e eterna torna-se perceptível no corpo de Cristo. Deus também pode se expressar nos rituais da vida social do homem: "lavar e ungir, partir o pão e beber do mesmo copo" são meios através dos quais o divino pode ser presentificado.

O culto sacramental reflete o "modo de pensar" simbólico do homem e o "modo de expressão" de Deus - que será sempre o significado dos símbolos, sua realidade última. Neste contexto, as ações e os gestos - como a procissão em comemoração ao Santíssimo Sacramento, as orações, receber a hóstia, beber o vinho - também se revelam como pertencentes à mesma ordem dos símbolos.

Cada celebração sacramental é um encontro dos filhos de Deus com o seu Pai, em Cristo e no Espírito Santo. Tal encontro exprime-se como um diálogo, através de acções e de palavras. Sem dúvida, as acções simbólicas são já, só por si, uma linguagem. Mas é preciso que a Palavra de Deus e a resposta da fé acompanhem e dêem vida a estas acções, para que a semente do Reino produza os seus frutos em terra boa. As acções litúrgicas significam o que a Palavra de Deus exprime: ao mesmo tempo, a iniciativa gratuita de Deus e a resposta de fé do seu povo.

Entretanto, a característica mais importante desta linguagem é que ela não apenas comunica, ou diz, ela também faz. Um celebrar com desdobramentos divinos e sociais. Os primeiros já abordamos excessivamente, agora nos voltaremos para os segundo. A Igreja, quando a levamos a sério, não apenas possui um extenso trabalho exgético sobre o quê, por quê e como acontecem seus rituais como também uma ampla reflexão sobre o homem e a sociedade. Ela pensa não só em seus elementos litúrgicos como também em quem participa deles

35. Para melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu caráter importante.

A Igreja é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia próprias. Se todos os membros do corpo místico participam dos mesmos bens e tendem aos mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são habilitados a cumprir as mesmas ações. O divino Redentor estabeleceu, com efeito, o seu reino sob fundamentos da ordem sagrada, que é reflexo da hierarquia celeste. Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus. Esse sacerdócio não vem transmitido nem por herança, nem por descendência carnal, nem resulta da emanação da comunidade cristã ou de delegação popular. Antes de representar o povo, perante Deus, o sacerdote representa o divino Redentor, e porque Jesus Cristo é a cabeça daquele corpo do qual os cristãos são membros, ele representa Deus junto do povo. O poder que lhe foi conferido não tem, pois, nada de humano em sua natureza; é sobrenatural e vem de Deus: "assim como o Pai me enviou, assim eu vos envio:..' ; "quem vos ouve, a mim ouve...";"percorrendo todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura; quem crer e for batizado, será salvo".[15]

Podemos entender em que medida, como dito anteriormente, a Igreja se constituiu enquanto uma sociedade religiosa e a importância, durante o papado de Inocêncio III, do estabelecimento de regras monásticas, de conduta e normas em geral para o seu bom funcionamento. São os membros desta comunidade que realizam o ritual: a cabeça que é Cristo e seu Corpo - formados por membros do clérigo e pelos fiéis. Como todo corpo, suas partes possuem funções diferentes e, portanto, durante a Eucaristia, apesar de adoradores e padres se unirem enquanto comunidade com Cristo, cabe aos últimos garantir a presença deste.

Assim, na celebração dos sacramentos, toda a assembleia é « liturga», cada qual segundo a sua função, mas «na unidade do Espírito» que age em todos. «Nas celebrações litúrgicas, limite-se cada um, ministro ou simples fiel, ao exercer o seu ofício, a fazer tudo e só o que é da sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas»

Esta 'mediação' entre membros e cabeça, torna a Igreja tão mediadora entre Deus e o Homem quanto a própria Eucaristia. Desta forma, ela também passa a se definir enquanto um mistério visível.

III. O mistério da Igreja

770. A Igreja está na história, mas, ao mesmo tempo, transcende-a. Só «com os olhos da fé» (190) é que se pode ver na sua realidade visível, ao mesmo tempo, uma realidade espiritual, portadora de vida divina.

A IGREJA – AO MESMO TEMPO VISÍVEL E ESPIRITUAL

771. «Cristo, mediador único, constitui e continuamente sustenta sobre a terra, como um todo visível, a sua Igreja santa, comunidade de fé, esperança e amor, por meio da qual difunde em todos a verdade e a graça». A Igreja é, simultaneamente:

–«sociedade dotada de órgãos hierárquicos e corpo místico de Cristo»;
– «agrupamento visível e comunidade espiritual»;

– «Igreja terrestre e Igreja ornada com os bens celestes».

Estas dimensões constituem, em conjunto, «uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino».[16]

Celebrar o Corpus Christi é afirmar a existência de todas estas realidades perceptíveis ainda que invisíveis, a eficácia sacramental - e como agora podemos perceber Cristo, a Igreja e a Hóstia realizam o mesmo papel. Por isso em Matão somos avisados "Estamos aqui para celebrar o Corpus Christi. Para afirmar a todos que a Eucaristia não é um culto, é realidade."

Entretanto, para a própria Igreja a Eucaristia é sim um culto, a Carta Encíclica do Papa Pio XII (Mediator Dei) sobre a liturgia sagrada da década de 50 é um movimento de reconscientização deste fato. Por outro lado, desde o século XIV os católicos reafirmam publicamente esta realidade através da procissão do Corpus Christi. Resta saber para quem a Eucaristia não seria uma realidade caso fosse...um culto.

VI

Talvez a Igreja pudesse fazer tal afirmação frente a um pensador como Frazer. Filho do século XIX e inserido em um contexto racionalista, tenta expandi-lo para toda a humanidade: surge O Ramo de Ouro. Em seu livro ele faz uma compilação de práticas de povos espalhados pelo mundo tentando mostrar como todos estão inseridos no mesmo projeto de controle da natureza através da ação humana. A diferença entre eles é que alguns acertam e outros não. Surge daí seu esquema de evolução das leis mentais que se cristalizam sucessivamente em magia, religião e na ciência.

No primeiro modo de pensar o homem acredita que dispõe da natureza, manipulando-a através de procedimentos mágicos simpáticos. A certa altura, descobre que suas analogias são falsas que ele erra ao pensar que possui certos poderes e, sentindo-se diminuido, passa a atribuir toda a dinâmica das coisas à seres invisíveis muito superiores: é a era da religião - a natureza age de acordo com a vontade e paixão dos deuses. Com a ciência, o homem descobre que a natureza não está à mercê de Deus e voltando um pouco à magia passa a acreditar que pode realmente manipular a natureza mas, ao contrário desta, tudo o que necessita fazer é observar - pensar - melhor. A questão é que, diferente da magia, a ciência faz as analogias certas e por isso pode prever e manipular corretamente. (Frazer, 1982: 249)

A crença na transubstanciação como afirmada pela Igreja Católica mereceria a atenção de Frazer na medida em que ela mostra um refinamento psicólogico. É uma evolução passar de um sacrifício cruento para um incruento, com uma concepção mais espiritualizada do culto. Portanto, ele notaria talvez como felizmente não se mata todo domingo uma pessoa para que Deus nos perdoe, a hóstia é um símbolo apropriado e civilizado. Frazer não teria maiores problemas com a contemplação deste símbolo enquanto símbolo, seu problema era que se este confundisse com o prático.

Desta forma, a concepção figurativa da Eucaristia de Erígena ou Berengário estaria dentro do que se espera da religião ao passo que o 'metabolismo' de Santo Ambrósio e sua afirmação de que a hóstia e o vinho são o sangue e o corpo de Cristo seriam analogias tão errôneas quanto a de qualquer povo primitivo, muito provavelmente um dos casos nos quais Frazer reconheceria as raízes pagãs da Igreja ou uma reminiscência do pensamento mágico no religioso.[17]

Frazer apartou o símbolo da prática na medida em que o primeira serve para contemplar e a segunda para agir com eficácia frente a fins estabelecidos. A Igreja cunha seu símbolo como eficaz, espiritual e materialmente, fazendo o mesmo com relação à sua ação de transformar uma espécie em substância.

Mas, fazer dialogar Frazer e a Igreja não significa que ambos estejam dizendo a mesma coisa. Na verdade não estão. Frazer é herdeiro de um foco bem diferente daquele religioso. Ele é uma cria do fechamento do círculo medieval proporcionado pela Reforma Protestante e pelo Calvinismo frente à visibilidade excessiva da Igreja com sua produção de acidentes divinizados.

Todo o pensamento medieval foi guiado, como vimos, pela necessidade de fazer o homem compelir a principal figura da época - Deus - através do símbolo da Eucaristia. Simbolizar é um ato extremamente sagrado na medida em que exprime o inexprimível através da única forma de expressão conhecida pelo homem. O que existia era Deus, restava fazê-lo aparecer apesar dos acidentes através dos quais ele deveria necessariamente se fazer presente.

O símbolo portanto se refere ao númen, ele deve encontrar seu significado – Deus – ao qual necessariamente se refere. Compelir a Eucarisita em direção à sua substância última foi o esforço medieval. A Igreja teve de lidar com tudo que era incidental, natural histórico e secular – ou seja, a hóstia, o vinho e ela mesma enquanto instituição que surgiu no tempo e no espaço – para que pudessem não só falar sobre mas ser o sagrado e essencial. Quando refinou este processo, passou ela mesma a ser sagrada e a dispor disto para criar objetos sagrados. Wycliffe, Lutero e Calvino aparecem, ainda no contexto medieval, com objetivos tanto semelhantes como diferentes aos da Igreja.

É interressante notar como os três estavam preocoupados com o fato da Igreja ter deixado de lado aquilo que é a figura central do pensamento medieval no próprio movimento em que tentava fazer a manutenção desta própria figura. Ela termina mais visível e real que Deus ao ponto em que os pensadores acima mencionados, para manter a antiga centralidade, negam à nossa realidade o acesso direto ao divino que os católicos apregoaram. Para que Deus permanecesse presente, agora ele deveria estar distante – no paraíso – em um lugar onde nem a Igreja teria acesso. Ao homem caberia a fé e a consciência religiosa para entrar em contato com a realidade divina. O acidente da natureza e da sociedade agora não poderia mais ser continente de nenhuma substância, esta agora só poderia ser acessada pelo que há de divino no homem: a sua crença em Deus. À natureza, o secular.



A época moderna, da qual Frazer faz parte, se desenvolve a partir das figuras centrais que eram resistências na época medieval. Agora se trata de lidar com o mundo secularizado da natureza, do homem e da sociedade sendo a primeira sua figura principal. Não é à toa que Frazer julga como equivocadas as práticas rituais pressupondo que o objeto destas era controlar a natureza como a ciência pensa fazê-lo.

VII

Malinowski, como se sabe, foi um grande crítico de Frazer. De encontro às tendências gerais da época (teorias evolucionistas), ele defende que as sociedades tradicionais devem ser estudadas como organismos coerentes em si mesmos, e suas culturas, como forma singular de resposta às necessidades naturais do homem. Recusando-se a considerá-las como sobrevivências de um primitivo passado europeu, o antropólogo estabelece as bases da teoria funcionalista, principalmente no que diz respeito ao trabalho de campo (observação participante) e à coleta de material etnográfico (Malinowski, 1978).

Mas, observando atentatamente encontramos uma similaridade entre o evolucionismo e o funcionalismo: o natural é a base, o universal. A cultura de cada grupo seria, neste caso, uma resposta particular ao fluxo unívoco da natureza. Tornar uma sociedade compreensível para nós significava, para Malinowski, mostrar a função o «para que» ela faz o que faz. No entanto, o «para que» já estava dado desde o início: o homem responde mentalmente a questões práticas colocadas pela natureza. O ritual, neste caso, é visto como uma mediação entre a natureza e a cultura, uma espécie de reequilíbrio mental do homem frente às frustrações que sua falsa ciência causa.

Malinowski argumenta que a magia é uma pseudociência, invocada para aliviar a ansiedade e a frustração quando lacunas no conhecimento e limitações da razão assolam as pessoas de ums cultura específica. (Taussig, 2010)

Mas o ritual, para o antropólogo, possui outras consequências e valores sociais além deste alívio. Ele também é uma forma do homem reconhecer o poder e a abundância da natureza, além de unificar a comunidade em termos morais. Quanto ao primeiro aspecto, a Igreja discordaria de Malinowski quando este afirma que os humanos reconhecem no alimento seu principal elo com o meio ambiente, vendo-o enquanto Providência.

Todos esses atos exprimem a alegria da comunidade, o seu sentido do enorme valor do alimento, e através deles a religião consagra a atitude reverente do homem em relação ao seu sustento diário(…) Significa a possibilidade de ultrapassar as preocupações do dia-a-dia, de dedicar maior atenção aos aspectos espirituais e mais remotos da civilização, se considerarmos então que os alimentos são o principal elo entre o homem e o ambiente que o rodeia, que ao recebê-los sente as forças do destino e da providência, veremos qual a importância cultural, ou melhor, biológica, da religião primitiva na sagração dos alimentos. (…) Sacrifício e comunhão, as duas principais formas de distribuição ritual dos alimentos, podem ser agora vistos à luz dos antecedentes da atitude primária de reverência religiosa do homem em relação à abundância providencial dos alimentos (…)A refeição sacramental é apenas outra expressão da mesma atitude mental, levada a cabo da maneira mais adequada, através do ato pelo qual se conserva e renova a vida – o ato de comer (…) Mas este ritual parece ser extremamente raro nos selvagens inferiores, e o sacramento da comunhão, preponderante num nível de cultura em que já não há lugar para a psicologia do comer, terá nessa altura adquirido um significado simbólico e místico diferente (Malinowski, 1984 : 13-14)

A Igreja não considera o alimento sacrificial enquanto algo quando na verdade é natureza: o hóstia não é natureza representada pelo divino – a crença que está à frente da realidade – ela é o divino na natureza – o acidente que está atrás da essência. Entretanto, a o Papa estaria de acordo com as afirmações de Malinowski sobre a funcionalidade das cerimônias públicas religiosas. Em seu texto Magia, Ciência e Religião, ele afirma, contra Durkheim, que

Somos, pois, levados a concluir que o caráter público é a técnica indispensável à revelação religiosa nas comunidades primitivas, mas que a sociedade não é detentora de verdades religiosas e muito menos o seu sujeito auto-revelado. A necessidade da mise em scène pública do dogma e da enumeração coletiva das verdades morais fica a dever-se a várias causas (Malinowski, 1984:22)

Malinowski, assim como a Igreja, acredita no caráter sagrado do sagrado – ainda que seus símbolos se refiram à secularidade secular. Isto condiz com a tentativa que a Igreja levou a cabo, especialmente à partir de Inocêncio III de se afastar progressivamente da esfera profana do poder feudal. Foi a criação medieval da igreja societária contra a sociedade secular da qual ela não faz parte.

Qualquer religião deve possuir as suas salvaguardas, palpáveis e fidedignas, através das quais é garantida a autenticidade da sua tradição. Sabemos como é extremamente importante, nas religiões superiores, a autenticidade das sagradas escrituras, a preocupação suprema com a pureza do texto e a verdade na interpretação. As raças nativas têm de se basear na memória humana. Porém, sem livros ou inscrições, sem grupos de teólogos, não deixam de estar menos preocupadas com a pureza dos seus textos, nem menos precavidas contra as alterações ou afirmações erradas. Apenas um fator pode evitar a quebra da linha sagrada: a participação de um grupo de pessoas na manutenção da tradição (Malinoeski, 1984:23)

VIII

Porque Malinowski criticaria Durkheim? Afinal de contas ambos parecem igualmente funcionalistas. Mas não o são. Pelo menos não do mesmo jeito. Na organização teórica do sociólogo francês, a necessidade (e compulsão) biológica dos símbolos e das ações é entendida como uma necessidade social. O dualismo malinowskiano, entre natureza e cultura/sociedade, transforma-se em Durkheim na dualidade sociedade e cultura, a questão passa a ser a da morfologia social e representações coletivas. A diferença é importante.

Esta diferença marca uma passagem na teoria antropológica, enquanto teoria moderna. O foco discursivo passa a ser a sociedade como natureza do homem, ou seja, as ações/crenças simbólicas passam a ser consideradas expressões da realidade societária primeira

Porém, interpretar dessa maneira uma teoria sociológica do conhecimento é esquecer que, se a sociedade é uma realidade específica, não é sem dúvida um império dentro de um império; forma parte da natureza, é sua manifestação mais elevada. O reino social é um reino natural(Sahlins,2003:112).

Rituais, como o Corpus Christi, seriam neste contexto, uma das representações que a sociedade faz de si mesma, o conteúdo cultural cuja estrutural formal é o verdadeiro fundo de interesse. De acordo com As Estruturas Elementares da Forma Religiosa, símbolos ou ações simbólicas são códigos que devem ser decifrados pelo antropólogo. O que se procura encontrar é o significado empiricamente motivado a partir de realidades sociais existentes: o ritual como «cola» da sociedade, promovendo sua integração, no caso de Durkheim; e se quisermos recorrer a seus contemporâneos, como Mary Douglas ou Victor Turner, códigos que ratificam papéis sociais, interesses humanos, classes ou que resolvem conflitos – todos, claramente, pré-existentes.

Em última instância, é sempre a sociedade que se paga, ela própria, com a moeda falsa de seu sonho (Mauss apud Lévi-Strauss 2004).

O interessante e mesmo o interesse desta reflexão é notar o movimento teórico da Antropologia lidando com o núcleo simbólico de sua época. Com Frazer e na mesma medida com os protestantes, deslocamos nosso foco para o homem e sua relação com o divino e com a natureza. O pensamento medieval se preocupava com a eucaristia enquanto relação do divino com o homem. Desta maneira, o ritual deveria tornar possível que a realidade falasse ao homem. Para que tal empreendimento se concretizasse o acidente teria que passar por um processo de divinização.

Na modernidade, a relação entre homem e Deus, perde progressivamente a necessidade mediadora da Igreja Católica, agora o homem poderia e deveria falar com Deus através de sua própria consciência. O divino passa a ser uma questão de cultura e ensinamento religioso. Humanizamos o divino e naturalizamos o acidente que são as coisas naturais. Frazer, então, preocupou-se com o que eram os fatos – um ritual obviamente (racionalmente) não pode fazer chover. Malinowski deu continuidade ao projeto e se propôs a racionalizar as atitudes do nativo – o fato é que o nativo responde a necessidades naturais e, portanto, verdadeiras. Durkheim eleva ou, antes, iguale, a racionalidade natural à naturalidade social.

IX

Lévi-Strauss, apesar de reconhecer-se enquanto herdeiro de Durkheim, recusa a distinção ontológica entre morfologia e representação e afirma a apropriação do social pelo simbólico - as relações sociais passam a ser consideradas dentro do sistema geral de representações coletivas. Ele chega – ou parte – de um naturalismo superior.

Ao se deparar com a antropologia religiosa (estudo dos mitos e rituais) ele verifica que esta se encontrava no mesmo estado em que havia encontrado os estudos do parentesco: inicialmente deslocada para o gueto do caótico e não acessível/inteligível ou objeto de interpretações que não o explicam satisfatoriamente. Entre essas interpretações estão a de Malinowski, que dá um caráter funcionalista ao pensamento primitivo, como se este fosse constituído para atender a necessidades básicas e vitais; e a de Lévy-Bruhl, que considera o pensamento primitivo como pré-lógico, atribuindo-lhe caráter afetivo. Além dessas, podemos incluir outras tentativas explicativas que terminam sempre por interpretar o mito ou como devaneio da consciência, ou como tendo chaves de interpretação para além de si próprio (determinismos sociológicos, psicológicos, astronômicos) ou simplesmente como filosofia de má qualidade. A tudo isto, Lévi-Strauss contrapõe sua posição sobre o pensamento selvagem. Não só o considera como um pensamento desinteressado que atesta vontade de conhecer, como o considera um pensamento intelectual, funcionando sob a mesma chave que o pensamento científico, ainda que em grau diferente e se projetando em realidades e com finalidades distintas. Nesse sentido vemos que o projeto super-racional do Etnólogo francês só é possível porque existe a possibilidade de tradutibilidade dos códigos do pensamento “primitivo” em outra linguagem, a do código científico. Essa possibilidade se dá porque ambos são produtos da mente humana e, portanto, estão sujeitos às mesmas leis de funcionamento.

A análise estrutural se dobra às exigências explicativas do próprio mito, não fazendo nada mais que deixar manifestas suas operações lógicas. Portanto, a análise estrutural não é uma interpretação no sentido de que utiliza como referente algo exterior ao mito para tentar explicá-lo e não pretende, igualmente, explicar como os homens pensam através dos mitos. Seu objetivo consiste em considerar como os mitos pensam entre si. Através do isolamento dos diversos níveis em que mito se situa e da comparação entre as diferentes camadas de sua estrutura folheada (formada por diversas variantes), pretende estabelecer um sistema de axiomas

Segundo François Dosse (2007), a lingüística moderna é a base unificadora do estruturalismo. Saussure, como pai fundador dessa corrente, continua a antiga discussão platônica sobre as relações entre natureza e cultura na linguagem, adotando o posicionamento convencionalista da arbitrariedade do signo. Afasta do estudo da linguagem considerações psicologizantes e empíricas e a coloca ao nível da abstração, como sistema de valores constituídos apenas por diferenças puras. Inaugura também a semiologia, que se caracteriza como o estudo da vida dos signos no seio da vida social, mas, delimita o estudo da lingüística à análise de suas leis internas da língua e da combinação recíproca de suas unidades distintas, demarcando o estudo do lingüista à relação entre significado (conceito) e significante (imagem acústica), com exclusão do referente – a realidade.

Para Saussure, não há nenhuma relação de preponderância entre duas faces da linguagem, que só se distinguem por ser, uma a marca (significante) enquanto a outra é carência (significado). Essa relação desigual que constitui a atividade de significação será retomada posteriormente por Lévi-Strauss, que, ao contrário de Saussure, acentuará uma de suas faces em detrimento da outra. Essa ênfase, herança teórica de Jakobson, ao mesmo tempo que concordante com bases teóricas saussurianas, se afasta (recusando cesura intransponível entre diacronia e sincronia) e radicaliza alguns de seus pressupostos, levando o modelo lingüístico ao seu modelo último: a fonologia estrutural. Soma-se, então, ao dualismo entre significante e significado, o binarismo do sistema fonológico que, reunidos por Jakobson num quadro que explica todas as oposições em todas as línguas do mundo, realiza o objetivo universalista e cientificista que sustenta o estruturalismo. Importante também notar, que é Jacobson, e não Saussure que pela primeira vez utiliza a palavra “estrutura”, relacionando-a, inclusive, com a noção de inconsciente.

De fato, Lévi-Strauss considera a Lingüística como meio de ligação entre Ciências Exatas e Ciências Humanas (Lévi-Strauss, 2003), pois seu objeto – a linguagem – é fenômeno social que propicia um estudo científico, já que independente do observador e sobre o qual se possui longas séries estatísticas. Além disso, seu método permite a tradutibilidade entre diferentes códigos através de um mecanismo de comparação que não se reduz apenas ao fracionamento, mas também a averiguação de leis, a realidade lógica dos elementos diferenciais. Levando em consideração que regras sociais também funcionam como uma espécie de linguagem que tem como objetivo a comunicação entre indivíduos e grupos, vê-se como é possível traçar um paralelo entre os objetos das duas disciplinas e confirmar a presença da Antropologia Social no domínio da Semiologia.

X

A Escola Francesa tinha como objetivo, entre outros pressupostos, a indagação sobre a natureza dos fenômenos sociais, a busca e a explicação sociológica dos universais do espírito humano dentro de uma perspectiva racionalista. Se Durkheim percebeu acertadamente que, antes de estudar a origem dos fenômenos, devem-se descrever todas as relações internas que o constituem, ele é criticado por Lévi-Strauss na medida em que elevou o social a uma categoria metafísica sem antes deduzir suas relações internas.

A partir de Mauss, entretanto, a noção de totalidade durkheimiana deixa de ter caráter superior aos indivíduos e suas partes e passa a ser imanente à sua rede de relações que a compõe. Ao se preocupar em definir o fato social como formado por múltiplas dimensões ligando o social ao individual e o físico ao psíquico, promove um deslocamento da dicotomia sujeito-objeto, estabelecendo que não só o que é observado faz parte da observação, mas que, quando observador e objeto possuem a mesma natureza, o observador também é parte da observação: objeto sendo, portanto, objeto e sujeito, “coisa e representação”. Anterior a esse deslocamento foi o estabelecimento das relações de complementaridade entre os campos psicológico e sociológico, a fim de definir a vida social “como mundo de relações simbólicas” e, condutas individuais como “elementos a partir dos quais se constrói um sistema simbólico”. Para atingir e compreender esses sistemas simbólicos, que se impõe à observação, Mauss propõe o estudo – e não o efetua completamente, segundo Lévi-Strauss – das representações conscientes dos nativos, pois oferecem melhor acesso às categorias inconscientes do pensamento, que lhe estão estruturalmente ligadas (Lévi-Strauss 2003, p.319). Mauss insere, portanto, uma dimensão inconsciente ao fato social, sua técnica operatória coincide com a dos lingüistas, na medida em que trata de distinguir um dado puramente fenomenológico (consciente) de uma infra-estrutura mais simples do que ele e à qual deve sua realidade.

Se, segundo Mauss, é na “intersecção de duas subjetividades” que está a verdade mais próxima quando se estuda um objeto antropológico, e se homens se comunicam por signos e símbolos, tudo o que Antropologia Social estuda é o que se coloca de intermediário entre esses dois sujeitos: signos e símbolos. Essa natureza simbólica do objeto não só estabelece semelhanças com o programa de Saussure – estudo de signos – como também diferenças, na medida em que se coloca enquanto via de ampliação do projeto do lingüista no estabelecimento da Semiologia: considerando que objetos que inicialmente não seriam signos estão “impregnados de significação”; ou seja, não se afastando dos meios materiais (imagens, objetos etc), da realia, para constituir o símbolo.

Portanto, a realidade social é considerada intersubjetiva e para que seja analisada de maneira apropriada, necessita de um método que não coloque em oposição leis do pensamento e leis do mundo. A dicotomia entre eu e o outro (etnologia) só pode ser superada no mesmo terreno em que a psicanálise determinou que o objetivo e o subjetivo se encontram: o inconsciente. Na psicanálise, a apreensão que só pode ser objetiva – já que só podem ser conscientes enquanto objeto – é a mesma que conduz à subjetivação. Para a etnologia, as leis de sua atividade mantêm essa mesma característica, mas, ao fornecer o caráter comum e específico dos fatos sociais, ela passa a considerá-los enquanto sistemas simbólicos que afirmam modelos de realidade. A antropologia assim termina por engendrar um duplo efeito: inaugura a noção de inconsciente enquanto função simbólica que é significante – “os símbolos são mais reais do que o que eles simbolizam” – ao mesmo tempo em que harmoniza seu funcionamento – sistêmico, relacional, diferencial e estruturante – às leis de conhecimento racional do real propostas pela Antropologia Estrutural.



XI

Os desenvolvimentos posteriores a Lévi-Strauss são de grande importância para os desdobramentos dos esquemas que propomos. Entretanto, saem do escopo da disciplina pois tratamde temas que, na grade, se referem aos temas contemporâneos da antropologia.

O que nos salta aos olhos neste retraçar da teoria antropológica é a menria pela qual ela se aproxima cada vez mais com a discussão que preocupou a Igreja durante séculos. Esta 'reaproximação' ocorre gradativamente na medida em que os antropólogos passam a focar mais uma vez no símbolo enquanto realidade deixando de lado a compulsão moderna de encontrar através do símbolo outra realidade. Isto se mostra de forma muito marcante em teorias como as de Sahlins e Geertz que reestituem a autonomia simbólica que a Igreja sempre professou. A antropologia atribui tanta eficácia a estas expressões quanto o Código do Vaticano professa com relação aos seus próprios símbolos.

Isto chama atenção porque uma etnografia clássica geralmente se propõe a uma caráter mais revelador do que a própria reflexão dos nativos nos fornece. Falar sobre a Igreja como sendo não tão sagrada, tradicional, mística, sacrossanta, pura mas sim permeada por relações econômicas, de poder e de classes é, em certo sentido, uma revelação. Aquilo que aquelas pessoas dizem não é a única verdade, existe um outro fundo, mais verdadeiro. Geralmente é isso que faz a eficácia de um cientista social. E esta estratégia funciona geralmente muito bem entre grupos, povos, classes que não possuem uma tradição reflexiva semelhante à nossa.

O caso da Igreja quando colocado em confronto com as teorias etnográficas contemporâneas se mostra instigante pela dificuldade ou impossibilidade de um efeito revelador – pelo menos no que diz respeito a Igreja. Esta se descreve e autodescreve há muito mais séculos do que a antropologia descreve aos outros e a si mesma e, por ter sempre dado importância máxima à linguagem, interpretação e aos símbolos, deixa o estudioso a procura de algo que os nativos não disseram – porque não podiam – um tanto quanto perdido. Se reconhecemos atualmente, depois de Sahlins, Geertz e Peirano que os símbolos criam realidades, o que dizer sobre os símbolos mobilizados pela Igreja que ainda não foi dito em sua discussão? Daí o efeito de inovação quando alguns antropólogos aplicam suas teorias rituais a grupos, classes, povos que não se reconhecem enquanto possuindo tal modo de ação. A antropologia agora se volta para o que em nossa sociedade é secular e fala sobre seus símbolos, rituais e integração. A marcha do MST não é simplesmente econômica e política, ela é ritualizada. A antropologia tem algo, felizmente, a revelar e, melhor ainda, a redimir: porque utilizando o vocabulário que o senso comum reconhece para aquilo que é vazio de valor e realidade (econômica, política, social) ela ainda tem a possibilidade de responder a este mesmo senso comum que os símbolos são, sim, eficazes.


NOTAS
[1] Resposta à pergunta 229: Por que os sacramentos são eficazes? In: Compêndio do catecismo da Igreja Católica. p.30.http://www.catequisar.com.br/dw/compendio.pdf

[2] Ritual Romano reformado por decreto do concílio ecumênico - Sagrada comunhão e culto do ministério eucaristico fora da missa. In:Conferência Episcopal Portuguesa. p.4 http://www.liturgia.pt/rituais/CultoEucaristico.pdf

[3] Biblia Sagrada (Lc 22,19-20)

[4] Thomas, St. Questão 75: A mudança do pão e do vinho no corpo e no sangue de cristo. In:Suma Teológica. «Further, our Lord said (Matthew 28:20): "Behold I am with you all days even to the consummation of the world." Now in explaining this, Augustine makes this observation (Tract. xxx in Joan.): "The Lord is on high until the world be ended; nevertheless the truth of the Lord is here with us; for the body, in which He rose again, must be in one place; but His truth is spread abroad everywhere." Therefore, the body of Christ is not in this sacrament in very truth, but only as in a sign.http://www.newadvent.org/summa/4075.htm

[5] Décimo segundo concílio ecumênico, Lateran IV, 1215 http://www.fordham.edu/halsall/basis/lateran4.html

[6] Wagner, Roy. Symbols that stands for themselves. Editora:University of Chicago, London: 1986. p. 104

[7] Araújo, João. Símbolos litúgicos - pequena introdução. http://www.joaodearaujo.com.br/default.asp

[8] Vaticano, Código do direito canônico artigo 331: El Obispo de la Iglesia Romana, en quien permanece la función que el Señor encomendó singularmente a Pedro, primero entre los Apóstoles, y que había de transmitirse a sus sucesores, es cabeza del Colegio de los Obispos, Vicario de Cristo y Pastor de la Iglesia universal en la tierra; el cual, por tanto, tiene, en virtud de su función, potestad ordinaria, que es suprema, plena, inmediata y universal en la Iglesia, y que puede siempre ejercer libremente.http://www.vatican.va/archive/ESL0020/__P15.HTM

[9] Vaticano, Sagrada congregação para a doutrina da fé.http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19730705_mysterium-ecclesiae_po.html

[10] Aqui faz-se necessário uma observação. Ao falarmos "economia sacramental" não se deve pensar que a expressão venha carregada do sarcasmo e denuncismo tipicamente modernos (e marxista) que se regogiza ao descobrir padrões e motivações econômicos em atividades que são conhecidas como sagradas, vendo nesta operação de "desmascaramento" da prática alheia a validação da sua própria prática. Poderíamos também operar de forma reversa e denunciar padrões e motivações divinos em nossas práticas seculares (inclusive o marxismo - especialista em fazer denúncias - já foi denunciado várias vezes por seu fervor religioso). Tanto uma revelação quanto a outra, apesar de ser um exercício crítico bem conhecido, não nos interessa aqui. E se a palavra "economia" está sendo utilizada isto se deve a dois motivos: nós compreendemos bem um funcionamento econômico, explicitar uma prática baseando-se neste conhecimento não é o mesmo que acusá-la como capitalista; além disso, aproveitamos para utilizar um pouco do discurso nativo como conhecido, por exemplo, através do Compêndio de Catecismo da Igreja Católico. "A economia sacramental consiste na comunicação (ou "dispenção") dos frutos da redenção de Cristo mediante a celebração dos Sacramentos da Igreja, principalmente da Eucaristia, 'até que Ele venha' (1 cor 11,26)."

[11] Wagner, Roy. Symbols that Stands for themselves. Editora:University of Chicago, London: 1986. p. 107

[13] Ibid.

[14] A não ser quando especificado o contrário, todas as informações foram retiradas do documento "catecismo na igreja Católica" http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p2s1cap2_1135-1209_po.html

[17] WITTGENSTEIN, Ludwig . Observações sobre O ramo de ouro de Frazer. AdVerbum. Campinas. Jul a Dez. 2007. Disponível em: http://psicanaliseefilosofia.com.br/adverbum/revistaadverbum.html.

O batismo como lavagem. – Um erro se produz, antes de tudo, quando a magia é interpretada cientificamente.

Se a adoção de uma criança ocorre de modo que a mãe a retira do seu vestido, então é insano acreditar que existe aqui um erro e que ela acredita ter dado luz à criança.

Deve-se diferenciar das operações mágicas aquelas que se baseiam numa falsa, demasiadamente simples, representação das coisas e processos. Se alguém talvez diz que a doença é tirada de uma parte do corpo para outra, ou acha dispositivos que a desviam, como se fosse um líquido ou um estado calórico. Então produz-se nesse momento, portanto, uma imagem falsa, o que quer dizer aqui desacertada.


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